Sobrou pra mim!

quarta-feira, 02 de novembro de 2016

— Eu quero saber é quanto custou. Mais do que isso, eu quero saber quem vai pagar: você ou ela?
— Você precisa entender é que coisa boa não pode ser barata. Olha sua roupa. Não fui eu que comprei isso.
— Eu é que não fui. Há mais de 40 anos não gasto meu dinheiro com roupa e calçado. Pra falar a verdade, numa viagem, o sapato estava me machucando e eu comprei uma sandália. A sandália continuou me machucando com a mesma crueldade. Nunca mais gastei dinheiro com supérfluos.
— E roupa e calçado são supérfluos? Não vai me dizer que você pretende andar nu pela cidade. Um homem tão conhecido!
— Ué, e por que não? Quem sabe assim, além de conhecido, eu ficava famoso e quiçá admirado!
— Meu Deus, esse homem ainda usa a palavra quiçá. Não me admira que não goste de roupa nova. 
— Eu só tenho roupa nova. Olha essa camisa aqui, que você andou escondendo: novinha. Tão bom, é de quando nos casamos, mas é pouco usada. Mas já que você tem implicância com ela, pode dar para os pobres.
— E pobre vai querer usar isso? Tem que ser muito pobre mesmo. Se não sou eu e nossos filhos, quem andava vestido igual mendigo era você.
— Você está é fugindo do assunto. Eu quero saber é em quanto ficou esse negócio que você e sua filha arrumaram. Pra falar a verdade, o assunto não me interessa, porque eu nem sei bem do que se trata. Estou perguntando só por curiosidade: quem é que vai pagar?
— Se o assunto não te interessa, é melhor mesmo você nem ficar sabendo.
— É que frequentemente assunto que não me interessa acaba caindo na minha humilde conta bancária. Se não fossem você e seus filhos, eu estava era rico.
— Estava era pobre. Podia até ter dinheiro no banco, mas não ia poder estender a mão para cumprimentar uma pessoa na rua, que ela botava uma esmola. Aproveita e me dá essa camisa, que eu vou mandar lavar.
— Tem pena de mim, do Brasil e da natureza: para de gastar água e energia elétrica sem necessidade.  O fato concreto...
— Só existe fato concreto. Foi você que me ensinou.
— Tá certo, mas no caso presente era preciso um reforço. O fato concreto é que você não respondeu a minha pergunta, que são duas: quanto custou e quem vai pagar.
— Quanto custou não importa, é dividido em cinco vezes, nem dá pra notar. De mais a mais, quem confere suas contas, não sou eu? Se desliga disso e se apronta.
— Aprontar pra quê? Eu vou é botar pijama.
— Mas não é hoje que você vai a uma palestra?
— A palestra é na sexta-feira, mulher, ainda estamos na quarta!
— Olha esse calendário aí na sua frente e vê se hoje é quarta ou sexta.
— Tá bom: hoje é sexta. Me deixa ver se acho uma roupa que você aprove. Mas antes, me diga: quem vai pagar: você ou ela?
— Nenhuma das hipóteses anteriores.
— Santa Protetora dos Chefes de Família Falidos, sobrou de novo pra mim!

Robério Canto é escritor, professor e presidente da Academia Friburguense de Letras

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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