O grande duelo

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Foi aí que se começou a cogitar a possibilidade de os sexos não serem apenas dois

Hoje está na moda, mas naquele tempo ninguém era macho o suficiente para admitir que era gay. Claro que não se usava a palavra gay, e também não vou dizer as que eram usadas, porque ou elas já são suas velhas conhecidas, ou você nunca as ouviu mais gordas ou mais magras. Em qualquer dos casos, não lhe traria nenhuma vantagem recordá-las ou aprendê-las agora.  
O fato é que não se sabia da alternativa homossexual: para todos os efeitos religiosos, legais, morais e sociais, os sexos eram apenas dois: masculino e feminino. Quer dizer, essa variedade que hoje se vê não era sequer imaginável. Se bem que no Ceará... 
Tanto que até hoje se diz que macho mesmo era ser bicha no Ceará em 1950. Entre quatro paredes, acho que isso deve ser coisa do tempo em que ainda nem havia esfriado o tal big bang, a grande explosão que formou o universo. Mas em público, nunca que isso havia existido.
Portanto, o caso que aconteceu no bairro onde eu morava merece ficar registrado para a posteridade. Mudou-se para lá um tal Arduíno, que viera para o Sanatório Naval e gostava de proclamar em voz bem alta: Sou de Marinha! A voz era alta, mas fina. 

Agravava-se o fato pelo fato de Arduíno ter um andar meio esquisito, que a maldade local comparava ao de Denilda, a moça mais bonita do lugar. Foi aí que se começou a cogitar da possibilidade de os sexos não serem apenas dois. 

Já se viu que era um tempo em que não se respeitava o direito de cada um ser de fazer o que quisesse ou pudesse, contanto que não prejudicasse ninguém. Conquista, aliás, bem recente e ainda incompleta. 

Mas, vamos lá. Arduíno ficava o dia inteiro na porta do botequim, tomando seu traguinho e proclamando: ”Sou de Marinha!” E quem um dia se virou ao ouvir esse grito solene, senão a própria Denilda, a linda?

Arduíno não pareceu dar a devida importância à beleza que passava. Fosse Vinícius de Moraes, tinha feito outra Garota de Ipanema. 

Mas — coisa misteriosa é o coração das mulheres — Denilda se encantou com Arduíno, e terminou o noivado com o contabilista Armando Gonçalves Dias de Azevedo e Souza. Tristeza geral no bairro. Tristeza na família da donzela.

Mais triste do que todos, Armando armou o maior barraco na casa da, na opinião dele, noiva; na opinião dela, ex-noiva. Diga-se de passagem que Armando era lutador de box. Amador, por certo, mas já com várias apresentações nos circos que pousavam na cidade e nas quermesses locais.

Aí, deu-se o que se deu. Arduíno se declarou ofendido com a atitude do rival. Não que estivesse interessado em Denilda, mas achou que Armando não reconhecer que ao preferi-lo a moça fazia uma boa troca era rebaixá-lo, a ele que, além de tudo, era de Marinha. 

Então, como nos filmes do velho oeste, Armando, boxer e contabilista, desafiou Arduíno, voz fina e andar esquisito, a disputar no tapa o coração da moça. O povo todo ficou com pena do marujo, coitado, ia apanhar até botar sangue pela ponta dos dedos do pé. 

Previa-se nocaute no primeiro soco. Chegou-se até a pedir a Denilda que interferisse, não deixasse Armando matar de pancadas o pobre adversário. Mas — coisa misteriosa é o coração das mulheres — orgulhosa de ser o pivô de tão comentada contenda, ela não disse um simples A.

Aí — vejam só o filme — lá vêm os dois andando, uma de cada extremidade da rua. Muita gente atrás das janelas, mulheres roendo unhas, mães escondendo as crianças. A gloriosa Marinha do Brasil, ali representada por Arduíno, ia ser arrastada pelas ruas do bairro. Passo a passo eles se aproximam...

De repente, um deles parece vacilar. Para, olha para os lados, teme e treme ao ver que o adversário avança decidido, em vez de retroceder, como era de se esperar. Armando perde então toda a compostura e sai disparado na direção contrária, nunca mais tendo sido visto por aquelas bandas. 

Denilda acabou casando-se com o dono do armazém local, que até então não tinha entrado na história. Arduíno foi gritar “Sou de Marinha” em outros mares. E até hoje persiste a dúvida entre aqueles que viveram tão emocionante episódio: Arduíno era ou não era?

Robério Canto é escritor, professor e presidente da Academia Friburguense de Letras

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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