O dia em que o trem não chegou

quarta-feira, 07 de fevereiro de 2018

Os trens brasileiros nunca tiveram a boa formação moral e pontual de seus irmãos estrangeiros

- Trem?! Apaixonado por trem?!

Você pode não acreditar, mas existe.  Eu mesmo participei recentemente de uma reunião em que todos os presentes falavam de trem como se falassem de alguma pessoa da família, no mínimo, um avô querido, que se foi, mas deixou lembranças e heranças, saudades e bondades. Até então, eu só tinha ouvido falar de gente apaixonada por avião. Aquele tipo de mulher a que se referiu Tom Jobim: “Tua beleza é um avião/ demais prum pobre coração...” Sim, um avião: presença imensa, poderosa, que num instante está pousada no chão de nossas vidas e que, de repente, desaparece entre as nuvens.  Enfim, cada um compara a amada ao que lhe parecer mais poético e verdadeiro. “Um ovo com olhos” é uma expressão japonesa que define um rosto feminino muito bonito. Em árabe, se diz que é “uma gazela”. Para os chineses, se uma mulher encantadora passa, “peixes submergem, gansos desviam”. Todos havemos de concordar que certas mulheres só podem ser comparadas a um avião em pleno voo. Ao vê-las, é impossível evitar que a imaginação suba até muito além das nuvens.

Mas não é sobre mulheres ou aviões que eu quero falar. E sim do trem, o mesmo que trafega em minha cabeça desde a reunião a que me referi no começo desta conversa, a qual já teria terminado se não tivéssemos saído dos trilhos. Culpa do Tom Jobim! Então, voltemos ao propósito inicial da nossa viagem. Naquele encontro, cada um dos presentes tinha alguma razão ferroviária para estar ali. O pai trabalhou na Leopoldina Railway. Passou a infância ao lado de uma estação. Viu tanto comboio assaltado em filmes de faroeste que ficou rendido. Ou simplesmente se apaixonou de graça pelo assunto.

E eu? Eu entrei para o grupo porque amigos me convidaram, e não porque seja apaixonado por trem, embora ele tanto tenha passado pela minha infância que até hoje vejo sua fumaça e ouço o rangido de seus freios. Meus avós, por exemplo, eram useiros e vezeiros em viajar de trem. Viagens de poucas horas, para as quais bastavam um pedaço de pão com manteiga e uma garrafa de café com leite. A mim, no entanto, parecia que eles embarcavam para grandes aventuras, que mil perigos os esperavam em terras distantes.

Mas, pensando bem, meu modesto merecimento para fazer parte de um grupo de amantes do trem é de origem, digamos, profissional. Menino, exerci a honrada e já extinta profissão de carregador de almoço. Ou seja, levava marmitas da casa dos trabalhadores para seus locais de trabalho. Dentre meus “fregueses”, os mais duradouros foram justamente dois ferroviários.

E aconteceu que, certa vez, o trem atrasou demais, que os trens brasileiros nunca tiveram a boa formação moral e pontual de seus irmãos estrangeiros. Lá pelas tantas, desisti de esperar e voltei para casa, em razão do que, ao chegar, os dois trabalhadores não encontraram nem um grãozinho de arroz com que matassem a fome. Eu é que quase morri ao peso das críticas que, alternadamente, ouvi de minha mãe e das esposas/cozinheiras.

Assim, na segunda vez em que o trem perdeu a hora, não abandonei meu posto, nem mesmo quando vi que a noite chegava e o trem, não. Fiquei sentado na varanda da estação, balançando as pernas infantis, até que minha mãe apareceu para me resgatar. Nesse dia em que o trem não chegou, a pobre mulher quase morreu, temendo que o filho tivesse sido embarcado à força em algum vagão sequestrador.

Humilde e pequeno trabalhador eu era, mas é sobretudo graças a essa precoce experiência profissional que  hoje eu posso, sem desdouro, fazer parte do Clube do Trem.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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