A nobre arte de roubar

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

 Para muitos brasileiros, no entanto, o que há de melhor neste mundo é a existência de governos

Nossos deputados, senadores e políticos em geral têm dado provas e mais provas do quanto se preocupam com a moralidade, a transparência e a boa aplicação do dinheiro que o povo põe em suas mãos. Só não vê quem não quer, ou quem anda muito distraído, perdendo tempo com as notícias sobre roubalheira, evasão de divisas, empreguismo, nepotismo, e outras coisinhas desimportantes. São maus brasileiros, que não reconhecem o valor dos nossos homens públicos e, com perdão da má palavra, das nossas mulheres públicas.

Ainda agora nossos dignos parlamentares estão empenhados em apurar aonde vai parar o dinheiro da Lei Rouanet, que escorre do caixa do governo e frequentemente se perde no  tempo e no espaço: tempo de uma transferência bancária e espaço de um bolso.

A lei foi criada para apoiar projetos culturais relevantes, mas tudo nesta vida é relativo e nunca faltou quem achasse que era mais relevante pegar essa grana para custear o próprio casamento ou para reformar o sítio do que aplicá-la em filmes que ninguém quer ver ou em músicas que ninguém quer ouvir. Livros, então, é jogar dinheiro fora, melhor passar uns tempos em Miami.

É o caso, também, de artistas que poderiam custear as próprias produções, mas têm o bom senso de deixar suas aplicações financeiras bem guardadinhas e torrar o dinheiro que o governo – quer dizer, o povo - generosamente lhes oferece. Uma famosa senhora fez um filme que só se pode recomendar a quem se deteste muito e, com a sobra, comprou um apartamento em Copacabana, nisso revelando grande bom senso, uma vez que filmes passam (duplo sentido) e caem no esquecimento, mas imóveis fincam e ficam e, se caem , é nas mãos dos herdeiros.

Mas a intenção dos deputados é justa e sincera. Tanto que estão convocando pessoas que se beneficiaram da Lei Rouanet para prestar esclarecimentos. Dentre as escolhidas, está Tomie Ohtake, grande nome da pintura brasileira contemporânea. A nobre senhora com toda a certeza não tem nada a temer, seu nome está acima das suspeitas que despencam sobre outros que usufruíram da mesma lei.

Portanto, dona Tomie poderia comparecer à Câmara e, com paciência japonesa, responder a todas as perguntas. Por que não faz? O leitor se perguntará, e deve ser o mesmo que se perguntou o nobre deputado que a indicou. Creio sinceramente que ela teria ido, mas um motivo de força maior a impede de, no momento, comparecer a Brasília. Tomie Ohtake faleceu no ano passado, aos 91 anos.

Não vamos concluir daí que a lei não seja boa ou que tenha sido sempre mal usada. Com certeza obras valiosas só se tornaram realidade porque não lhes faltou essa ajuda. Apoiar a cultura é dever de todo governante, porque sem cultura o povo não tem identidade e sem identidade nem chega a ser povo, é pouco mais que um ajuntamento de pessoas.

Mas, como quase tudo que está nas mãos dos governos se perde no matagal da burocracia e afunda no pântano da corrupção, não tem sido diferente com a bem intencionada Lei Rouanet. “Se hay gobierno, soy contra”, dizem os espanhóis. Para muitos brasileiros, no entanto, o que há de melhor neste mundo é a existência de governos, pois sem eles ficaria bem mais difícil praticar a nobre arte de roubar.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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