Nem tudo que reluz é apóstolo

terça-feira, 04 de julho de 2017

Em todo filme em que aparece, Jesus já entra em cena falando inglês, com apóstrofo e tudo

Nem tudo que reluz é apóstolo, já dizia o antigo ditado. Vejam, por exemplo, essa definição que corre pela Internet: “Apóstrofos são os amigos de Jesus que se juntaram a ele naquele jantarzinho que Michelangelo fotografou”.  

Ora, já na alfabetização eu aprendi que apóstrofo é aquele risquinho que a gente usa no Brasil para parecer que está escrevendo em inglês. Assim, em vez de Funerária Peixoto, a empresa ostenta o nome de Peixoto’s Delivery.  Não seria descabido dizer que isso a torna mais original, elegante, charmosa, etc, etc. Mas o apóstrofo já diz tudo, dispensa outros elogios. O falecido é nacional, também a madeira que o embala. Mas só mesmo um burrão do seu quilate não compreende que com um toque americano por cima até defunto brasileiro tem mais chances de entrar no céu. Basta você reparar no seguinte: embora nascido na Palestina, em todo filme em que aparece, Jesus já entra em cena falando inglês, com apóstrofo e tudo.

Não que eu seja contra o idioma que seu Peixoto ama tanto. Até acho graça da lei que queriam criar para impedir que usássemos o inglês a torto e a direito. A influência americana é um fato inarredável. Além do mais, as línguas se comunicam umas com as outras. Imagine que os japoneses ouviam os padres portugueses dizerem cristão e respondiam usando a mesma palavra, embora um pouquinho alterada: kirishitan.

Veja-se o caso da informática. Essas invencionices todas vêm dos Estados Unidos e, junto com elas, desembarcam as palavras que as designam.  Vai ser difícil trocar “site” por “sítio”, (embora em Portugal tenham trocado), ou dizer “rato” em vez de “mouse”. Mas daí a nos curvarmos diante de qualquer apóstrofo, francamente.

Uma cidade longe daqui tem um edifício que se chama “Comercial Center”. Os donos evitaram batizá-lo de “Centro Comercial” para que não ficasse parecendo coisa de pobre. E na pizzaria, depois que você paga a conta, o letreiro agradece: “Thank you”. Recentemente, deparei-me com o anúncio de um encontro de dentistas que, para não parecer um reles encontro de dentistas, intitulava-se “meeting odontológico!” Vai ser chic assim na... na... na Califórnia ou em Nova York! Agora, se você entra no shopping e nas vitrines está escrito “sale”, o melhor é obedecer e salir de fininho, que discretamente estão avisando que não te querem lá dentro, que aquilo não é lugar para gente de tão baixa categoria que ainda usa o português para fazer compras.

Às vezes as consequências são ainda mais sérias. Certa vez um sujeito analfabeto em inglês juntou um dinheirinho e ficou pensando na maneira mais rápida de transformar aquilo num dinheirão. Sendo pobre, a primeira coisa em que pensou foi em jogar no bicho. Mas a mulher, sabiamente, comentou que nesse jogo só havia dois bichos: a águia e o burro. “A águia é o bicheiro, que ganha sempre, dê o bicho que der”, disse ela. E acrescentou: “O burro são os idiotas como você, que jogam de noite para recuperar o que perderam de dia, e perdem de novo”.

Assim instruído, teve a maravilhosa ideia de apostar nos cavalos. Para aumentar o investimento e o respectivo lucro, vendeu o único anel da esposa e o relógio que herdara do pai. No jornal que o bookmaker lhe emprestou, escolheu o nome que lhe pareceu mais alvissareiro: blaque orse. Esvaziou os bolsos em cima do animal, pressentindo que dessa vez ia ficar rico. Terminada a corrida, ouviu pelo rádio que o vencedor tinha sido um tal de Bleque Rorse, nome que ele não tinha visto em lugar nenhum do jornal. Jogou fora a pule premiada e foi para casa a pé, porque não tinha dinheiro para o ônibus.

Quanto à palavra apóstolo, creio saber do que se trata. Numa partida de pôquer, o crupiê lhe pergunta: “Aposta todo o seu dinheiro nas cartas que tem na mão?” Ao que, confiante, você responde:

-Apósto-lo!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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