História de terror

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Apaixonam-se à primeira vista, talvez porque o salão estivesse escuro e ninguém visse nada direito

Vou contar a história, mas recomendo que não a leiam antes de ir para a cama (para dormir, quero dizer), pois talvez não consigam dormir ou, se dormirem, talvez tenham pesadelos. E se forem para a cama por aquele outro motivo, também é aconselhável que não estressem os nervos antes, porque o nervosismo, vocês sabem, faz fracassar os atletas mais entusiasmados. E pretendo enfeitar um pouco, porque, afinal, tenho uma página a preencher e a história, em si mesma, é bem pequeninha.

Na minha infância, o medo era a principal arma pedagógica. De modo que os adultos não se furtavam a distrair as crianças narrando coisas literalmente do outro mundo. Mulas sem cabeça, fantasmas no sótão, almas penadas (que para mim eram criaturas cheias de penas, feito uma galinha eriçada), lobisomen (esse então era companheiro diário ou, o que é pior, noturno, dos insones de antigamente). “Está sem sono, filhinho? Vou contar uma história pra você dormir: Era uma vez um morto-vivo que...”.  Sem falar nos ciganos, que tinham existência concreta e visível, pois não raramente perambulavam pelo bairro e, segundo nos ensinavam os adultos, eram especializados em roubar crianças para vendê-las ou trocá-las mais adiante. Cinco crianças valiam por um bom cavalo.

Pois bem, vamos aos fatos. Os antigos contavam, como verdadeira, a seguinte história: numa bela noite do dia 10 de maio de 1930 (atenção para as datas!), Antônio Maria e Filomena Saudade se conhecem durante baile num famoso clube da época. Apaixonam-se à primeira vista, talvez porque o salão estivesse escuro e ninguém visse nada direito. Parece até que foi aí que, por engano, dois marmanjos se abraçaram e se beijaram e, ao descobrirem que eram ambos do sexo masculino, não acharam a experiência de todo má (nossa cidade foi pioneira em muitas coisas e, infelizmente, não tem suas glórias devidamente reconhecidas).

Mas deixemos isso pra lá, que não estamos aqui para criticar quem quer que seja, seja lá com quem for. Cada um cuide de si, que a morte cuida de todos nós. Então, falemos dos dois apaixonados. Antônio Maria caiu de amores pela beleza estranha de Filomena Saudade. Achou-a um tanto pálida e fria, mas julgou que fosse timidez da moça, afinal, era o primeiro encontro e a paixão, quanto mais ardente, mais calafrios produz. Bailaram até as tantas da madrugada, mas, quando o dia ameaçava clarear, eis que a bela dama sai um instantinho do salão. “Vai ao banheiro”, pensa Antônio, enquanto faz planos para levar a moça para a cama, e não era para dormir.

Mas ela não volta em cinco minutos. Mulher no banheiro demora muito, ainda mais que elas têm o costume de ir ao banheiro em dupla, sabe-se lá por quê! Cinco minutos, vá lá. Dez minutos já começa a preocupar. Vinte minutos não dá mais para ficar parado, esperando. Nosso personagem vai até a porta do toalete feminino, arrisca um olho lá pra dentro, não vê nada além de um envelope com seu nome. Estica o braço, a cara espremida contra o portal, até que traz o envelope na ponta dos dedos.

Dentro do qual, informações sucintas: Maria Filomena, nascida em 7 de abril de 1907. Rua do Adeus, número 1220. Um velho garçom, com cara de espanto, explica para o freguês onde fica a rua de nome tão poético. O rapaz corre para lá, onde chega ao romper da manhã. Arrepiado, descobre que está em pleno cemitério municipal. Vagueia pelas alamedas, até que se depara com o túmulo de número 1220, e a inscrição: Filomena Saudade. Nascida em 7 de abril de 1907,  falecida em 10 de maio de 1929. Orae por ela.”

Agora, vá dormir. Talvez seja melhor tomar um suco de maracujá antes de se deitar.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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