Do outro mundo

quarta-feira, 03 de abril de 2019

Eu não recebi nem sequer um mísero comprimido de Melhoral

Um dos nossos amados ex-presidentes...  E aí o leitor se perguntará qual deles, uma vez que muito amados todos eles são, graças ao tanto que se dedicaram ao bem do povo e à grandeza da pátria. Não vamos, pois, citar nomes. O que importa é que esse grande brasileiro declarou certa vez que a saúde pública no Brasil era de fazer inveja ao Primeiro Mundo. Não só concordo como amplio: a saúde pública no Brasil é mais do que do Primeiro Mundo, é coisa do outro mundo.

Ainda agora a imprensa acaba de revelar mais uma prova desse fato incontestável. Trata-se do seguinte. Em Goiânia foi descoberto um órgão do governo, cujo nome a prudência manda omitir, que gastou cerca de dez milhões de reais com a doação de remédio e próteses a pessoas necessitadas. Ação das mais louváveis, porque o que não falta no Brasil é gente ora doente, ora deficiente, ora as duas coisas ao mesmo tempo.

Uma particularidade, no entanto, chamou a atenção das autoridades. Coisa de menor importância, mas que, enfim, mereceu ser investigada. É que, dentre os que constavam da lista dos beneficiados, muitos já estavam mortos há anos, o que leva à razoável suposição de que não precisavam mais das injeções, das internações ou da cama hospitalar que, no papel, lhes tinham sido destinadas.

Ou seja, é a saúde pública brasileira socorrendo seus dependentes, inclusive aqueles que já se encontram no outro mundo e que de nada mais necessitam aqui da Terra, a não ser talvez das nossas orações. Acrescente-se que mesmo entre os vivos não se encontrou um só que tivesse sido premiado com um mísero comprimido de Melhoral.

Jornalistas batem à porta de dona Maria e perguntam se efetivamente lhe foi entregue uma prótese. Dona Maria não sabe o que é efetivamente e pensa que prótese é palavrão. Mas, bem explicadas as coisas, acaba entendendo que os homens querem saber se ela  recebeu do governo uma perna para colocar no lugar da que perdeu num acidente de avião. Dona Maria nunca andou de avião e, como prova de que do governo só recebe notícias ruins, mostra as duas pernas originais, as quais, embora bem maltratadas pelos anos de uso, ainda estão no devido lugar.

Apertados pela polícia e pela imprensa, os generosos doadores apresentam explicações irrefutáveis. A saber: que de todo coração desejavam amenizar o sofrimento de alguns brasileiros; que escolheram ao acaso os futuros beneficiados (um dos interrogados até citou Júlio César: “Alea jacta est!”); que só aos poucos foram percebendo que aqueles a quem tanto queriam ajudar se encontravam em lugar incerto e não sabido ou, o que é pior ainda, falecidos; que, dada essa infeliz e imprevista circunstância, não puderam entregar os medicamentos ou os equipamentos que pretendiam  doar; que as muitas exigências burocráticas impediram que conseguissem devolver o dinheiro ao governo; que, em razão do exposto, deliberaram dar um destino condigno aos dez milhões; que, enquanto não resolviam o que fazer, guardaram a grana num cofre da repartição; que o dito cofre desapareceu sem dar explicações. E nada mais souberam informar nem lhes foi perguntado.

Diante dessas ponderações plenamente satisfatórias, o caso foi encerrado. “E os dez milhões?”, perguntará o leitor. E eu sei lá!  O que posso garantir é que eu não recebi nem sequer um mísero comprimido de Melhoral.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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