Dito e feito

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

 Íamos felizes os três, eu, ele e a bicicleta, depois de mais um dia de trabalho

Fico olhando para as crianças que saem da escola. Vão pelas mãos de mães atarantadas, que não sabem se ouvem as novidades dos filhos, se cumprimentam as professoras, se dão atenção às amigas. Vão também pelas mãos dos pais, senhores tão sérios, tão ocupados que mal se dão ao trabalho de olhar o desenho que pula orgulhoso da mochila e já vão correndo, porque deixaram o carro em lugar proibido.

Vão ainda pelas mãos das babás, ser tão ambíguo na cabeça infantil, onde ora é quase parente, ora é estranho metido na casa da gente. Mas vão também pelas mãos dos avós e isso é o que mais vale a pena olhar nessa confusão da saída. Porque nos avós não há pressa, nem a ansiedade dos pais, nem o distanciamento da empregada.

Os avós até parecem crianças de novo, pelo menos reaprenderam a andar devagar, como os pequeninos. Não levam os netos aos arrancos, como quem arrasta um peso terrível; antes são arrastados pela energia infantil, e as crianças lhes parecem leves como as nuvens brancas no céu ou o algodão doce no palito.

Às vezes, vendo-as, lembro-me dos tempos idos. Vejo meu avô e uma criança — tão parecida é ela com o garotinho que eu imagino ter sido! Meu avô se chamava Teófilo, que significa “amigo de Deus”, coisa que, de fato, ele era. E Deus também era amigo de meu avô, tanto que hoje em dia os dois ficam horas numa pracinha do céu jogando dominó e contando casos de antigamente.

Deus explica como e por que criou o mundo, “seu” Teófilo conta como é na Terra o trabalho de funileiro, coisa que ele foi e Deus não. Também meu avô ia me buscar. Não na escola, que lá eu não esquentei lugar quando criança. Fui logo trabalhar numa loja no centro da cidade.

De manhã eu ia sozinho para o trabalho, pedalando a bicicleta. Mas, quando eu saía, à noitinha, vovô ia me encontrar e me levava para casa, uma das mãos em meu braço, a outra conduzindo a bicicleta. Íamos felizes os três, eu, ele e a bicicleta, depois de mais um dia de trabalho.

E uma vez minha avó me levou pela mão numa longa viagem a pé, da Vila Nova a Conselheiro Paulino. Recordo-me de ter andado muito e de ter ficado impressionado com o que vi. Muito impressionado, pois até hoje me lembro do episódio. Conto-o aqui muito em voz baixa.

Dá-se que a história envolve uma velha tia e não sei se ela gostaria de ver esse assunto tratado assim publicamente, em letra de forma. Bom, conto o caso, confiando na discrição dos leitores, que hão de saber ficar de boca fechada, não vão sair por aí dando com a língua nos dentes.

Pois bem, minha tia era recém-casada com um rapaz do Rio. A prezada leitora retroceda o seu próprio casamento em 40 ou 50 anos e veja se não fica igualzinho ao de minha tia: o marido é que mandava. E a tal ponto que ele só permitira que a esposa viesse visitar os pais com a condição de que ela não tirasse a aliança do dedo nem para tomar banho.

Não sei se para tomar banho (Deus me livre de julgamentos levianos) ou se para arrumar alguma inocente paquera, o fato é que ela tirou a aliança do dedo. Tirou e perdeu. Não houve reza, nem choro, nem vela que fizesse a aliança reaparecer. Varreram a casa, puseram os móveis no quintal, tiraram as roupas dos baús, e nada. Não houve caixa que ficasse fechada ou gaveta que não fosse aberta. Tudo em vão. Quem mandou desobedecer ao marido?

Quase na véspera de a tia voltar para o Rio, a aliança não tinha sido achada. Aparecer em casa sem ela era comprar briga grande, podia até dar em demissão da esposa, por justa causa. Foi aí que minha avó teve a ideia de ir a Conselheiro Paulino. Me pegou pela mão e saiu. Fomos à casa de um homem deveras estranho. Em troca de umas notinhas amassadas, o homem juntou dois lápis, um verde e outro vermelho. Sobre uma folha de caderno, riscou pra cá, riscou pra lá, até a folha virar um cemitério cheio de cruzes bicolores. Feito isso sentenciou:

— Pode ir pra casa que a aliança já apareceu.

Dito e feito. A danada tinha caído dentro de um sapato e lá ficado quietinha por dias e dias.

O que tem isso com as crianças saindo da escola? Sei lá. Acho que também me perdi. Talvez na semana que vem eu me ache. Se tudo mais falhar, volto a Conselheiro, para ver se o tal homem, embora centenário, ainda existe.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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