Dedo na ferida

quarta-feira, 14 de março de 2018

Já está mais do que na hora de darmos aos acontecimentos o seu justo peso e valor

É uma tragédia.Verdade que outros países também têm seus sofrimentos. O terrorismo ataca na Europa. Na África é aquela fome; nos Estados Unidos, Trump; no Japão, terremotos. Na Venezuela, a fuga da população torna ainda menor a pequena Veneza sul-americana. Os venezuelanos resistiram à falta de liberdade, de remédios e de comida, mas, quando começou a faltar papel higiênico, disseram “chega”, e puseram os pés nas estradas ou, melhor dizendo, nas fronteiras. Enfim, todos têm seus sofrimentos.

Mas o desastre que se abateu sobre nós é incomparável: O dedo de Neymar está quebrado! Nem é bem o dedo, é um ossinho que fica ali atrás. Mas o dano é o mesmo. Lembra outro momento de angústia nacional, quando Ronaldo Fenômeno, atualmente conhecido como Ronaldo Gorducho, torceu o joelho. São fatos desastrosos, que ocupam com razão o noticiário e as conversas em todo o país. Só se comparam ao nascimento da filha da Xuxa, ao qual foi dedicada uma edição inteirinha do Jornal Nacional. Entendam bem: não estou dizendo que o nascimento da filha da ex-Rainha dos Baixinhos foi um desastre, a moça é até bem bonita. Só estou dizendo que foi outro grande acontecimento, desses que magnetizam o povo brasileiro, sempre tão preocupado com os destinos da pátria.

Também não concluam que sou indiferente aos padecimentos do craque da seleção. A dor é a mesma para os pobres e os ricos, os totalmente famosos como ele, e os completamente anônimos como eu e você, leitor. Estou na torcida para que o nosso camisa 10 se recupere logo, e completamente. Quando, à noite, rezo pelos que sofrem, com certeza ele não está excluído da minha preocupação e solidariedade. E mais: estou é esperando pela Copa do Mundo, na qual torço para que ele brilhe. Sonho com uma final contra a Alemanha, que será cruelmente abatida por nós pelo placar de sete a zero. Não aceito que eles façam nem um golzinho. Vão provar do próprio veneno.

Aqui um parênteses para lembrar a reação dos torcedores brasileiros ao 7 a 1. Com o nosso complexo de vira-lata, como bem definiu Nelson Rodrigues, achamos que somos invariavelmente os piores em tudo. Então, era de se esperar que, depois de arrasar a seleção, em pleno território mineiro, os alemães fossem tratados como um bando de hitleres, insultados e apedrejados pelas ruas. Mas o que aconteceu com os nossos algozes? Foram tratados com carinho e respeito, como se tivessem vindo nos trazer a felicidade eterna. Saíram do país não apenas inteiros, mas aplaudidos. Ora, vão falar mal dos brasileiros na...no ... escolham vocês mesmos o pior lugar do mundo.

Contudo, com todo respeito ao dedo de Neymar e ao joelho de Ronaldo, é de se lamentar que nós, que tanto choramos se ficamos em segundo ou terceiro lugar num campeonato de futebol, não derramaremos uma só lagrimazinha quando  nosso estudantes tiram os últimos lugares nas avaliações internacionais. Já está mais do que na hora de darmos aos acontecimentos o seu justo peso e valor. Torçamos por Neymar, que ele merece. Mas torçamos principalmente pelos pobres e abandonados deste país, nos quais às vezes pensamos como se fosse um povo estrangeiro, com o qual nada temos a ver ou haver. Torçamos, sobretudo, pelas crianças pobres, para a quais a vida não é redonda e macia como uma bola que se chuta, mas quadrada e dura como uma pedra em que se tropeça.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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