Ética e autoconhecimento

sábado, 03 de março de 2018

A descoberta de si e a consolidação dos valores éticos

“... há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (Fernando Pessoa)

A grandeza da vida é saber se descobrir. É descobrir que há um saber exclusivo a respeito de nós mesmos. Foi Hermann Hesse quem nos ajudou a perceber que "a verdadeira profissão do homem é descobrir o caminho para si mesmo". Nesse sentido, nada há de mais urgente do que os esforços que nos levam ao autoconhecimento. Nada há mais importante na agenda do que o movimento de olhar para dentro de si na busca por compreensão e, acima de tudo, autonomia.

O grande entrave desse processo é que envolve sempre muita dor e exige grande abnegação. E isso, via de regra, incentiva o recuo. A dor nasce, exatamente, porque a travessia entre o estamos sendo e o que podemos ser é demasiadamente solitária e arriscada. Pelo caminho, podem-se encontrar mil e uma intempéries e espelhos. As vezes, os espelhos são repugnantes.

A desistência, entretanto, só faz emprestar mais sofrimento ao processo porque gera a dor do sentimento de covardia. E, quando isso ocorre, facilmente se confunde a covardia que impele ao não mergulhar com um traço da própria personalidade. E, com isso, nos descobrimos, antes de nos conhecermos verdadeiramente, covardes e medrosos.

Manter-se firme na decisão é a condição para que o conhecimento de si mesmo seja verdadeiro e, acima de tudo, emancipador. A sabedoria de si é libertadora, mas a busca dela é, paradoxalmente, penosa e dolorida.

As seduções do recuo geralmente envolvem terceiros. Englobam o mínimo de valor que mora dentro de nós. Por vezes, o cuidado com o outro esconde a incapacidade de cuidar de si mesmo. É uma forma nobre de fugir de si próprio. O sofrimento dos outros, assim entendido, potencializa a dor de quem precisa passar pelo deserto.

Mas essas mesmas seduções envolvem também a comodidade de quem não quer apostar ou arriscar. Toda aposta envolve risco e isso apavora quem quer se encontrar. Há sempre muito medo de enveredar por um caminho e, ao longo da trajetória, descobri-lo sem saída ou, pior, sem volta. Como não se conhece o caminho, tampouco o destino, o risco do percurso assusta.

Como não se sabe o que vai se ter pela frente é absolutamente amendrontador correr os riscos inerentes ao mergulho.

A vida, vista assim, é assustadora. Caminhar parece uma empreitada de altíssima periculosidade, daí o frequente recuo.

Mas, há que se assumir, com a beleza da poesia, que "há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (Fernando Pessoa)

Roupas usadas são muito confortáveis e, por isso, correr o risco da perda é bloqueador; mas, por outro turno, se manter na tranquilidade da segurança é desonesto.

E a pior de todas as desonestidades é aquela que nos impede de promover o autoconhecimento e, pior, a que impõe aos outros limites que não são deles.

Uma questão delicada nisso tudo é que os caminhos do autoconhecimento são sempre virgens. Não há estradas pavimentadas e sinalizadas a percorrer. O que há é um deserto imenso; o que há é a vastidão onde céu e chão se confundem e dão vertigem.

O deserto é sempre amedrontador, mas é nele que se aprende que somos mais dependentes do que imaginamos ser. Passar pelo deserto é inevitável; importa, no entanto, ter a paciência histórica e psicológica que a solidão demanda.

O deserto, embora dilacerante, ajuda a cultivar humildade. Ajuda a compreender que toda caminhada, mesmo a mais solitária de todas, sempre tem alguém como companheiro de viagem. No fim das contas, todos caminhamos em busca de alguém. Peregrinamos rumo ao encontro de alguém.

A beleza da caminhada se revela quando descobrimos, no deserto, que esse alguém também vem de longe em busca de si mesmo. Quem se arrisca e aposta na caminhada solitária, não raro, descobre no encontro as razões e respostas que o fizeram andar.

Os espelhos se quebram e o olhar do outro passa a refletir melhor quem somos, de fato.

Reconhecer-se dependente pode a ser a maior de todas as descobertas da autonomia que perseguimos tanto.

 

Assista em: https://www.youtube.com/watch?v=pf8DZVhdfh0&feature=youtu.be

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