O carnaval do protesto

sábado, 17 de fevereiro de 2018

“Doutor Vanor,  doutor Vanor,

Eu quero uma audiência com o senhor

Aqui em casa todo dia falta água

E quando chove o lamaçal é de amargar.”

(Trecho de marchinha que foi sucesso no carnaval de 1964, de autoria de Enpeas de Barros)

A necessária liberdade, o riso frouxo, a pilhéria, entre outras características do carnaval, foram citadas na última crônica, publicada no fim de semana de folia, como ingredientes da festa que clama pela desconstrução da formalidade. Em Nova Friburgo a carnavalização chegou à política em 1894, quando os grupos e as agremiações friburguenses foram às ruas para um manifesto contra o projeto da luz elétrica, da água e do esgoto, que não se materializavam, e contra os impostos altíssimos cobrados pela décima urbana.

O clube carnavalesco “Quem são eles?”, em 1914, realizou diversas reuniões e ampliou suas comissões organizadoras para a montagem dos carros alegóricos, também denominados críticos, porque traziam para as ruas temas polêmicos, quase sempre alfinetando os políticos locais.

Em 1963, o Bairro da Vila Nova sofreu com as chuvas por conta da construção da estrada de acesso ao Colégio Nova Friburgo, da Fundação Getúlio Vargas. A lama descia e formava um grande piscinão. Foi naquele carnaval que o compositor Enéas de Barros compôs a marcha para o “Bloco Unidos da Vila Nova” que dizia: “Eu sou o jacaré ô ô/ O jacaré bacana e bossa nova/Troquei o Amazonas por Friburgo/ Agora moro lá em Vila Nova!/Em Vila Nova nadar na lama é meu passatempo./Na Vila o ambiente está para mim/Pois nem no Amazonas quando chove/Existe tanta lama assim.”

As ruas do Centro do Rio de Janeiro já viram desfilar dezenas de grupos críticos, com pilhérias políticas e sociais. Os mais importantes foram Os Tenentes do Diabo, sociedade que surgiu também em 1855 com o nome de Zuavos Carnavalescos; os Democráticos Carnavalescos (1867); e o Clube dos Fenianos (1869). Muitos historiadores atribuem a esses grupos a inspiração para a criação das escolas de samba.

Em outros momentos na história das escolas de samba, as críticas políticas e sociais foram emblemáticas. Um, na virada dos anos 60 para 70, auge da ditadura militar no Brasil. Três enredos marcantes, nesta ocasião, falavam sobre a liberdade. O primeiro, em 1967, quando a Salgueiro desfilou com o enredo “A história da liberdade no Brasil”. Dois anos depois, em 1969, a Império Serrano falou sobre os “Heróis da Liberdade”. E, no Carnaval de 1972, a Vila Isabel levou para a passarela o enredo “Onde o Brasil aprendeu a liberdade”. Era um momento em que a censura estava no auge e as escolas deram vazão a esse grito represado pela liberdade.

Em meados dos anos 80, a Caprichosos de Pilares e a São Clemente também falaram sobre o momento conturbado da abertura política no Brasil, quando o povo ainda não votava. Elas levaram para a avenida o grito de “Diretas Já!” e usavam faixas falando sobre a Constituinte. Houve também, em 1989, o célebre desfile da Beija-Flor, em que Joãosinho Trinta produziu um Cristo mendigo, para criticar a pobreza, mas a alegoria acabou proibida pela Justiça, a pedido da Igreja.

Em 1987, aqui em Nova Friburgo, a Alunos do Samba, desfilou com o enredo “Historiada Tupiniquim”, de Elói Machado, e subverteu o carnaval, num protesto contra a corrupção. Já no final da década de 90 e nos anos 2000, quando o país viveu mais estabilidade política e econômica, os enredos críticos foram deixados de lado.

Neste reinado de momo em 2018, os desfiles das escolas do grupo especial carioca, Paraíso do Tuiuti e Beija Flor de Nilópolis, na Sapucaí, chamaram a atenção pela dimensão política dos sambas-enredo e por referências nada sutis ao atual estado do país. O recado está dado aos políticos, mostrando que o carnaval vai muito além das plumas e paetês, pois é capaz de trazer à tona a realidade carnavalizada e levar milhares de comuns à reflexão. Hora de colocar as barbas de molho.

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David Massena

David Massena

David estreou nas colunas sociais ainda na década de 70. É jornalista, cerimonialista, bacharel em Direito, escritor e roteirista. Já foi ator, bailarino, e tantas coisas mais, que se tornou um atento observador e, às vezes, crítico das coisas do mundo.

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