Você pra mim é problema seu

sexta-feira, 02 de junho de 2017

Não que eu me incomode com as pessoas que me perguntam, por curiosidade,  por que eu raspei o meu cabelo: eu me incomodo é com a cara inquisidora que algumas fazem. Ainda bem que não tive muitas experiências do tipo, ou talvez apenas apaguei-as da ideia. Tirando um primo, que me interpelou como se eu fosse alguém com câncer terminal, nos primeiros meses eu até respondia educadamente. A ele, respondi secamente “porque eu quis”.

Há em mim uma certa dificuldade de enxergar o sadismo, mesmo eu sendo alguém tão masoquista. Eu não entendia muito bem quando elas queriam só saber por curiosidade, ou quando queriam desfilar suas opiniões delirantes a respeito — geralmente carregadas de estereotipos prediletos. Mas, assim como essas pessoas inquisidoras, eu também imagino que quando há uma quebra radical de um determinado padrão estético, há também uma motivação para isso, as mais diversas, mesmo que não em todos os casos. Talvez pense assim porque foi o que aconteceu comigo, e também com pessoas próximas. Eu só não vou sair por aí, perguntando pras colegas os porquês delas e fazendo cara de inquisição: elas não são da minha conta, eu não sou da conta delas.

Raspei o meu cabelo em duas ocasiões. Uma doença me causa desde criança falhas no couro cabeludo, e como meus cabelos são muito pretos, as falhas aparecem. Às vezes, desconcertantes. Como quando eu me casei com o meu primeiro e único namorado de infância, (há 14 anos, pasme!) e cumpri o protocolo como manda o figurino. Vestido de noiva feito por minha mãe,  buquê que a minha amiga Nathalia fez, com umas rosas vermelhas em volta e um miolo de rosas amarelas. Horas dentro de um salão de beleza abafado, sem comer nem beber. Um noivo choroso e emocionado me esperando no altar, o nosso filho de seis meses de suspensório e gravatinha nas primeiras fileiras da igreja. Casamento comum, pessoas comuns, que estavam sendo pais adolescentes. Mas, é claro, a noiva tinha Lua em Áries. Não foi sem crise que eu andei aquele tapete vermelho, de braços dados com tio Eli.

Ser uma noiva lambrecada de laquê e maquiagem foi uma merda completa para a menina que cresceu em boleia de caminhão e subindo árvore. De repente eu era um moleque dentro de um salão de meninas, com um vestido branco pendurado num cabide. Estavam me enchendo a cara de de reboco, coisa que eu nunca tinha visto na vida. E logo descobriram meu segredo: como enfiar aquele cabelo estranho, falhado, dentro de uma coroa de strass? Foi um estresse só. Chorei algumas vezes. E, pra dizer a verdade, estava me arrependendo daquele circo todo, de ter que estar tão bonita aquele dia.

Dias depois, voltei ao mesmo salão e raspei tudo. Simples. Ficou bem ruim. Eu era muito magra e orelhuda, não usava joias, nem batons, nem nenhum outro tipo de adorno, me senti como a caminhoneira lésbica naquele primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror, sem a menor popularidade entre as pessoas. Mas era uma coisa minha comigo, não tinha a ver com ninguém. Eu tinha me tirado um peso, estava linda. Nenhuma opinião me importava, ou talvez só a do homem que dividia meu corpo comigo. Estava tudo ótimo: tudo em mim ele achava lindo. Mas vizinhos, parentes, o pessoal da igreja, ninguém perdoou.   

Caguei e andei, como dizem. E ano passado, eu o raspei pela segunda vez. Com a Tijeras, uma cabeleireira daquelas que parecem enxergar algo em você que você ainda não enxerga, e pra melhorar, ela era estudante de psicologia. Dessa vez eu raspei livre de qualquer impressão externa. E fiquei realmente bonita.

Eu acho que as mulheres que raspam os cabelos no fundo estão mandando esse recado: estão rompendo com o senso comum e transcendendo ao desconhecido. Eu só soube de verdade quem eu queria ser quando passei a não me ver com os olhos dos outros, nem ter a aparência como um peso enorme.

Rasparei uma terceira, uma quarta vez, quantas vezes tiver vontade. Se fizerem fogueira, beleza. Eu nasci mesmo pra incendiar.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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