Selfies de nanquim

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Há quanto tempo você não recebe uma carta? Há quanto tempo sua comunicação é via zap, chat, snap, tinder, skype, messenger, enfim, subcutânea? Sua pele só está disponível para encontros cujos fins se dão na cama? E a alma, vai poder participar?

Odeio telas. Na sorveteria ao lado da escola havia um balanço. E de frente pra ele, uma TV enorme, uma tela enorme, coisa de rico nessa época. Márcia, a diabética, gostava de assistir Pica-pau naquela telona. Ela ia comigo pela tela - e eu por ela. Ela pelo deboche do Pica-pau, e eu, pelo sorvete, pelo balanço. Os encantadores de serpente usam flauta. A tela hoje é a nossa flauta, que nos mantém dançando conforme o jingle da propaganda. Márcia, serpente encantada, eu com os olhos colados em Márcia e o balanço cada dia mais silencioso das nossas próprias vozes.

Sinto hoje as pessoas como sentia aquele balanço: quero estar com elas. Gosto de gente que me balança, que me tira do lugar, que leva minha alma pra passear. Gosto de gravar os cheiros, as vozes, muito mais que os perfis e nomes de usuários. Mas tudo é tela, nada mais é janela. Poderíamos juntos viajar um mundo todo apenas contando trechos de nossos livros preferidos, mas continuamos com os rostos enfiados no Google. Eu quero mais é bolo de casamento. Me chamem para milkshakes e boliche. Não quero ter que maquiar e fazer pose pra foto. Mais balanço e menos balada, menos saída e mais retorno, menos fluxo de caixa, por favor!

Há quanto tempo você não escreve um bilhete, assim, à mão, ou não serve um café na cama para o ser-amado? Tira esse celular do carregador e deixa de usar a desculpa do alarme. Cabeceira de cama é lugar de pílula, água na moringa, livro de autoajuda e camisinha. E bilhete escrito à mão. Viva o gesto da atenção. Se você estiver numa cafeteria e tiver uma pessoa do seu lado, não peça a senha do Wi-fi ao garçom. Larga esse texto, esse Facebook, me larga aqui. Eu sou só um Pica-pau na TV da sorveteria: dê atenção pra ela. Tira esse seu cachorro eletrônico da coleira e guarda na mochila. Esse rosto precisa ser guardado, conversado, crivado com nanquim dentro do teu cérebro, pois esse sujeito poderia estar em qualquer outro lugar do universo mas escolheu estar aí, com você. E pode ser até que ele goste mais de chá. Pode ser até que ele preferisse beber outra coisa.

Há quanto tempo você não escreve uma carta, há quanto tempo não diz um eu te amo? Mas dizer sem usar as palavras, sem enviar os emoticons. Dizer sem usar nem a voz, apenas segurando a mão, olhando nos olhos e não nas telas, sentindo cheiros.

Vamos desligar um pouco as telas, vamos gravar mais rostos? Vamos escrever mais cartas, sentir mais pele? Compremos mais nanquim.

TAGS:

Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.