O menino muito louro

sábado, 24 de setembro de 2016
Foto de capa

Quando eu tinha uns doze anos, me apaixonei perdidamente por um coroinha da igreja chamado Francisco. Um garoto franzino, muito louro, arredio, com qualquer coisa de transtorno de aprendizagem. Eu ficava lá, paspalhando, olhando de longe, enquanto o coroinha coroinhava a missa. 

Um dia, tive uma ideia genial. Acontece que se aproximava o dia de Santa Teresinha, padroeira da igreja, no início de outubro. Marlene, a tia da catequese, sempre me convencia a vestir uma burca horrenda, com uma blusa de lã branca excruciante por baixo para tapar os cabelos, mais um véu desbotado e com muito cheiro de guardado por cima da cabeça. Tudo isso acompanhado, claro, de uma sandália rasteira que mamãe comprou na promoção dois números menor que eu precisava.

Pois bem. Eu me travestia de Santa Teresinha, de cruz e rosas na mão e tudo mais, e seguia a procissão, que descia o morrinho da paróquia, ia até a Creche São José e voltava a passos de tartaruga — uma tartaruga sofrida. Mamãe, obviamente, levava a velha Kodak boa de guerra, para deixar à posteridade 36 poses de uma criança abençoada, que desfilava o bairro vestida de santa. Mas, naquele ano, pouco eu tinha de santidade. Escondida, atrás de uma pilastra, com a Kodak surrupiada da bolsa de mamãe, antes de vestir meu figurino santo, tirei uma foto de Francisco.

Foi uma sensação. Guardei a dita-cuja numa agenda e carregava comigo para onde quer que eu fosse. Já não precisava esperar os domingos. Quando dava saudade, a foto dele estava lá. Lembro que numa determinada esquete da missa o padre desejava “a paz de Cristo” e então a igreja se abraçava como um gesto de confraternização. Dois beijinhos e a paz de Cristo, meu irmão. Um tapinha nas costas. Mas nós, o futuro da humanidade, nos aproveitávamos da deixa do padre João e saíamos a nos beijar, a percorrer vários metros de igreja para colar a boca sôfrega na bochecha do crush, que naquela época nem tinha essa alcunha ainda. Eu treinava selinhos em casa, na tal foto loura de Francisco, mas, como foi comum no futuro a muitos dos meus amores, eu nunca lhe dei paz de verdade.

Pois veja como é que são as coisas. Foi assim, nas farras de beijos e não beijos daquele ano que conheci uma falsa ruiva chamada Angélica. Que muitas vezes levei a minha casa e mamãe montava uma cama no chão, maiorzinha, para que pudéssemos dormir depois do lanche e do programa do Chico Anísio. Que muitas vezes dividi segredos, Trakinas e travesseiros, com quem enrolei muitos brigadeiros de aniversário. E essa pessoa, sim, depois de muito subir o Belmonte comigo e colocar os bofes pra fora na subida, ficou íntima o bastante para ter acesso aos álbuns de fotos da família. Fotos na cozinha branca de mármore de tia Marilza, ou das rabanadas de vinho dos nossos natais. Minhas fotos vestida de Santa Teresinha. Minhas fotos de bebê ainda. A foto de Francisco, louro. Angélica conheceu a minha história, para, então curtir as minhas fotos.

Olha o quanto de história a gente economiza numa simples — com o perdão da palavra — rolada de página em rede social, instagram, facebook, cacete a quatro. Antes, o que se oferecia de melhor para o outro era a intimidade de se dividir a vida, a casa, o quarto, de se deixar mentalmente implícito “olha, se te trago até meu santuário quarto bagunçado é porque você é importante para mim”. Intimidade dos outros a gente não invadia, não expunha, não ridicularizava, e só participava se era chamado. Mas e agora? Se de dentro de casa para o mundo nós mesmos dividimos com estranhos nossa intimidade através das telas, através de cliques frios, como ter com quem amamos a intimidade e o carinho mais sinceros? Vivendo, né. Deixando as fotos pra lá. E o engraçado é que quando eu quero muito a foto de alguém que eu amo, me pego novamente tirando fotos escondidas. Não me ligo aos disponíveis, gente sem pose me interessa muito mais.

Só não sei se as comparações estão corretas. Porque Angélica, um dia, apaixonada toda vida pelo Francisco também, passou uma tesoura na minha cabeça, e cortou o meu cabelo todo torto, fingindo que ia me fazer uma hidratação. Caramba, hoje me dou conta, éramos crianças de 12 anos, conhecíamos um mundo tão reservado e íntimo, mas, no fim, que diferença fez pra ela nós termos um dia dividido o travesseiro?

Eu nunca mais dei a paz de Cristo a ninguém, nem dois beijinhos, nem nada. Continuo não percorrendo muitos metros atrás de beijos. Pra dizer a verdade, o amor de Francisco foi lindo justamente porque jamais foi vivido. Eu nunca beijei Francisco. E nunca mais o vi tão louro.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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