Sherazade e o espelho: por uma nova ecologia literária

Um artigo de Kelly Cristine, coordenadora do curso de Letras do Cederj
segunda-feira, 11 de julho de 2016
por Jornal A Voz da Serra
Sherazade e o espelho: por uma nova ecologia literária

Contam, nas Mil e Uma Noites, que na antiga Pérsia, o Rei Shariar descobre que fora traído pela esposa e, enfurecido, mata ambos. Depois, toma uma terrível decisão: todas as noites, se casaria com uma nova mulher e, na manhã seguinte, ordenaria a sua execução para nunca mais ser traído. Assim procede ao longo de três anos. Um dia, a filha mais velha do primeiro-ministro, a bela e astuta Sherazade, diz ao pai que tem um plano para acabar com a barbaridade do Rei. Todavia, para aplicá-lo, necessita casar-se com ele. E assim acontece, Sherazade casa-se com o Rei. No dia das núpcias, entra no quarto, instala-se no tapete e começa: “Era uma vez um mágico muito malvado...”. Furioso, Shariar se esforça ao máximo para impedir a narrativa; resmunga, bufa, tosse e, vendo que de nada adianta sua estratégia, fica quieto e se põe a ouvir o relato de Sherazade. E assim ela o faz por anos, conta uma história após outra, deixando o Sultão maravilhado. Por vezes, ele dorme, por outras, Sherazade deixa a história por terminar, criando suspense até o dia seguinte. Até que um dia, contemplando a esposa, descobre que jamais poderia matá-la, pois não consegue viver sem ela.

 O texto das Mil e Uma Noites contraria uma constante na descrição das personagens femininas na literatura. Sherazade, no texto original, é descrita por suas características intelectuais — coragem, memória, astúcia, leitura, dedicação aos estudos de medicina, filosofia e belas artes, poetisa — antes de serem mencionadas suas características físicas. O que dela refletiu na sociedade está para além da beleza. 

Há investigações feitas pela teoria feminista que dão ao espelho, objeto de uso corrente há séculos, um sentido peculiar. Partem da perspectiva de que homens e mulheres dão ao objeto utilizações diferentes. Os homens o fariam de forma mais utilitária, já as mulheres, por terem de si uma imagem mais visual, o utilizam para a construção de sua identidade, à medida que cresce a estetização e o consumo do corpo feminino. Há, portanto, normatividades e ideologias que são refletidas nesses espelhos que estabelecem hierarquias entre as práticas sociais. O que os espelhos refletem torna-se, então, o que as sociedades são, deixando de haver algo tanto atrás quanto para além deles.

Se Sherazade houvesse oferecido seu corpo, igualmente belo, teria morrido e, como ela, todas as outras que a seguissem. Porém, ao enfrentar os riscos, ela recupera a dignidade feminina e vence a morte através do seu saber e de sua palavra.

A linguagem não somente veicula informações, ela ocupa função central entre seus interlocutores. Para Bourdieu, o poder da palavra está em mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato de fala. Sherazade subverte os valores femininos que os espelhos refletem em seu grupo social ao inserir-se na cultura letrada e dela fazer uso para seu empoderamento. Para isso, entra em um território monolítico, de domínio masculino, hermético, onde o poder autoriza o próprio poder, impedindo o trânsito intelectual feminino, o que garante às mulheres uma visão de si opaca nos espelhos sociais.

A entrada das mulheres na literatura é, tal como a subversão de Sherazade, uma entrada marginal. Traz da margem seus conceitos, desvinculando-se dos padrões e tem evolução lenta, dada a situação social, política e religiosa da mulher: mulheres silenciadas, suas vozes abafadas, sua sexualidade oprimida, submetida às autoridades e excluída do mundo acadêmico e das intelectualidades.

Histórias únicas e peculiares vão inscrevendo as mulheres em uma nova conjuntura do mundo letrado e construindo um novo paradigma na literatura. Safo foi uma poetisa membro da aristocracia e importante representante feminina da lírica grega. Faz parte dos nove poetas líricos do período arcaico. Foi elogiada por Platão e imitada por Catulo.

No século XIV, Christine de Pisan, poeta e filósofa italiana, era conhecida por, já a seu tempo, criticar a misoginia pertencente ao meio literário da época. Precursora do feminismo, defendia a importância do papel feminino na sociedade e foi, na França, a primeira mulher de Letras a viver do seu próprio trabalho. 

Ao longo do século XVIII, há um aumento na escolarização das mulheres nobres, que faz surgirem os primeiros movimentos feministas. As mulheres, com isso, começam a escrever ocultando suas identidades sob o uso de pseudônimos masculinos. Essas mulheres abriram a porta para que grandes escritoras como Jane Austen, George Elliot e Emily Brontë pudessem escrever sob suas próprias assinaturas.

Virginia Woolf ressalta em seus livros a necessidade da mulher ter um quarto para exercer sua literatura. Em toda sua obra, há críticas em relação à sociedade patriarcal inglesa. Também Simone de Beauvoir, escritora, intelectual e filósofa, foi uma ativista política e feminista teórica. Ficou conhecida pelo livro “O Segundo Sexo”, em que faz uma análise detalhada da opressão das mulheres e um tratado fundamental que baseia o feminismo contemporâneo.

O movimento sufragista, no século XIX, ganha muitas adesões e incentiva a participação da mulher na imprensa. A imprensa feminina surge na Inglaterra, desenvolve-se na aristocracia francesa, mas populariza-se no século XX. No Brasil, várias mulheres fundaram jornais: Joana Paula Manso de Noronha, em 1852, estimulou as mulheres a não escrever sob pseudônimos, assinando seus artigos com suas iniciais. Júlia de Albuquerque Aguiar, em 1862, com o Jornal O Belo Sexo, no Rio de Janeiro, insistia para que as mulheres assinassem seus artigos, abandonando o uso das iniciais. Em 1873, Francisca Senhorinha da Motta Diniz fundou o jornal O Sexo Feminino, arena de luta pela educação da mulher. Josefina Álvares de Azevedo editou, em 1888, o primeiro número da revista A Família, cujo slogan era “Mulher instruída é mulher emancipada”. Em 1918, Bertha Maria Júlia Lutz torna-se líder do movimento sufragista, após concluir sua graduação na Sorbonne, e funda a Liga Para Emancipação Intelectual da Mulher.

Sim, este é um texto com muitos nomes. Ocultá-los seria o mesmo que negar-lhes o reconhecimento de suas fortes presenças no percurso intelectual feminino. Seria tornar opacas suas imagens no espelho e continuar garantindo-lhes um papel secundário no plano cultural e intelectual das sociedades. Identidades: memórias de mulheres precursoras de um movimento de universalização de outro ponto de vista, memórias sem as quais não haveria hoje um enorme número de vozes femininas inscritas na arte literária.

Cecília Meireles, Conceição Evaristo, Bárbara Heliadora, Maria Firmina do Reis, Lucia Miguel Pereira, Henriqueta Lisboa, Lucia Machado de Almeida, Raquel de Queiroz, Ana Maria Machado, Lígia Fagundes Teles, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Marina Colasanti. Helena Parente Cunha, Ruth Rocha, Lya Luft.

Elvira Vigna, Luisa Geister, Carol Bensimon, Verônica Stigger, Ana Paula Maia, Laura Erber. Adriana Lunardi, Tatiana Salem Levy, Simone Campos, Patrícia Portela, Chimamanda Ngozi Adichie, Elianor Catton, Dona Tartt, Sylvia Plath, Guadalupe Nettel, Zadie Smith, Eliana Brum, Vanessa Bárbara, Alice Munro, Rose Marie Muraro, Julie Maroh.

Os contrastes de relações simbólicas culturalmente relacionadas ao gênero não são imperiais e existem para serem superados. Por isso, nomes. Nomes que surgem por uma nova ecologia dos saberes. A mulher, a literatura, sua transformação paradigmática e reinvenção cultural.

Há um universo de nomes: muitas Sherazades refletidas no espelho.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS: Artigo
Publicidade