O Velho Chico e os sentidos da superação

Em tempos de paralimpíada, ex-paratleta friburguense narra a viagem que fez ao sertão nordestino para se reencontrar com o esporte
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
por Rodrigo Garcia
Rodrigo se preparando para entrar no Rio São Francisco (Fotos: Yan Muniz)
Rodrigo se preparando para entrar no Rio São Francisco (Fotos: Yan Muniz)

Na última quinta-feira de agosto, saí de Nova Friburgo durante a madrugada e, depois de percorrer mais de 1.500 quilômetros, cheguei à noite a Piranhas, cidade símbolo do Cangaço, no interior de Alagoas, às margens do mítico rio São Francisco, o “Velho Chico”. Em minha companhia estavam o amigo Yan, minha irmã Sandra, e minha mãe Lygia.  

No dia seguinte, de manhã, cumpri a primeira tarefa da viagem. Nadar no Riacho do Talhado, uma área represada do rio São Francisco. Lá, junto com dezenas de nadadores de todo o país, nadei 2 mil metros em meio a cânions, águas profundas, e cenários de gravações de novelas.

No sábado, então, acordei cedo para o verdadeiro motivo da viagem: participar da prova Volante Lampião e nadar 6 quilômetros no rio São Francisco. Outra largada da mesma prova teria o percurso de 12 (!) quilômetros.

Me inscrevi nessa prova por dois motivos. O primeiro era a natação. Apesar da minha atual frutífera vida boêmia, dos 14 aos 20 anos fui paratleta (atleta com deficiência) com diversas premiações. Por exemplo, conquistei várias medalhas nos I Jogos Paradesportivos Brasileiros, disputados em Goiânia. O significativo encurtamento congênito na perna esquerda, que me obrigou a aprender a andar aos 14 meses já usando uma ortoprótese, nunca me impediu de praticar esportes, incluindo futebol, natação, boxe, tênis e outras atividades para pessoas com ou sem deficiência.

O segundo motivo era o sertão nordestino, tema pelo qual sou apaixonado. Sou leitor de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, e em 2011 cheguei a passar noites na cidade de Canudos, palco da homônima guerra. Fui para conhecer os cenários da batalha, e aproveitei para incursões pelo Nordeste.

Enfim, iniciei a prova. Logo o medo desapareceu, a respiração encaixou, os braços entraram no ritmo, e vivi uma das mais intensas experiências de minha vida, nadando por aquele riozão e em meio a lugares paradisíacos, montanhas, redemoinhos e correntezas que me acolhiam e carregavam. Assim, para minha surpresa, com apenas 1h40min de natação, chegamos à marca dos 6 quilômetros — Márcia, uma atleta que fez dupla comigo, o barqueiro Zé, que de sua canoa de pesca nos guiou pelo percurso, e eu.

Dali, tomamos uma decisão sob insistência de Márcia: completar os 12 quilômetros de prova! E, assim fizemos. Num total de 3 horas e meia de natação, chegamos a Entremontes, lugarejo à jusante de Piranhas. Saímos do rio muito melhores do que quando entramos na água.

Essa marcante tarefa que cumpri, nestes tempos de Paralimpíada, me veio cheia de reflexões especiais, uma delas, o meu reencontro com o esporte. Embora eu tenha voltado a nadar havia meses, foi na solidão das braçadas no Velho Chico que relembrei como é maravilhoso praticar um esporte. Eu me sentia a pessoa mais satisfeita com a vida.

Outra reflexão foi sobre o sentido da palavra superação. Pois, o fato é que eu era a única pessoa com deficiência entre as dezenas de atletas. E, por este motivo, na cerimônia de premiação, numa praça lotada, recebi, além do troféu, uma homenagem por representar “as pessoas com necessidades especiais de todo o Brasil”. Aproveitei a oportunidade e fiz um discurso sincero.

Disse que estava agradecido pela homenagem, mas que não havia nada de especial na minha presença ali; que ter um braço ou uma perna a menos não mudava muita coisa na vida, que nossa obrigação é viver plenamente, e que a exceção é viver mal. Finalmente, fiz uma crítica ao termo “pessoa com necessidade especial”. Expliquei que minha necessidade especial era ir a Paris uma vez por ano e trabalhar apenas uma vez por semana, mas que eu não estava conseguindo cumprir estes objetivos; e que o termo adequado era pessoa com deficiência.

Ali, eu acabara de formular um entendimento para minha vida. A superação não é privilégio de pessoas que aparentemente fazem algo simbolicamente muito forte. A superação é algo inerente ao ser humano. Eu senti que havia me superado por, apesar do sobrepeso, da vida boêmia e dos anos sem nadar, ter completado aquela prova de resistência física e emocional. Por outro lado, não sentia superação em cumprir aquela prova e ter deficiência — esta tarefa era minha obrigação, pois, se a vida me encurtou um pedaço do corpo, me deu um coração enorme para amar muita gente, e coragem e medo para viver (“O que a vida quer da gente é coragem”, Guimarães Rosa).

Em tempo: Dias depois que escrevi este depoimento, aconteceu a morte do ator Domingos Montagner, a poucos quilômetros de onde nadamos. O mesmo Velho Chico que me deu tantas alegrias, foi o Velho Chico onde morreu o ator. Segundo o organizador da prova que participei, Montagner mergulhou numa das poucas áreas proibitivas para a natação em todo o rio São Francisco — entre o deságue da represa do Xingó e a cidade de Piranhas. Confesso que ainda estou chocado.

Foto da galeria
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade