O novo e o velho: uma questão de olhar

Que anseios um homem de 85 anos e uma adolescente de 17 podem ter em comum, em plena era das tecnologias sofisticadas?
domingo, 23 de outubro de 2016
por Ana Blue
Thayssane Rocha
Thayssane Rocha

É a segunda vez que o homem de cabelos muito brancos se senta àquela cadeira preta da recepção e eu não sei mais o que lhe dizer. Dias antes, havíamos conversado sobre sua vida, obra e carreira: Aldo Onesti é gaúcho de nascimento, filho de pai italiano e mãe argentina — “na minha casa não se falava português” — e friburguense por opção há cerca de seis anos, já que escolheu a cidade serrana para viver. Aos 85 anos, caminha lentamente com alguma dificuldade, como há de ser normal dentre os mais idosos, principalmente em ruas tão irregulares. Quadro de fragilidade este que em nada denuncia a verdadeira natureza do homem à minha frente. 

Professor, compositor, escritor, tradutor e intérprete de cinco línguas, Onesti espera no jornal pela publicação de uma de suas 250 poesias — organizadas com capricho no livro “Carta de mar-e-ar – Poesia em distintos idomas”. Mas depois de duas edições temáticas do Light sem seu texto, ele me espera ali, na cadeira, enquanto penso na melhor maneira de lhe dizer que, num jornal diário, às vezes é preciso de um “gancho” pra gente publicar uma matéria. Uma notícia, um acontecimento recente. E pela primeira vez eu não tinha conseguido pensar em nada, tão envolta estava eu nos temas dos outros cadernos.

Mas, quando se é escritor, de verdade, o leitor é tesouro. O leitor é a busca final, é o X assinalado na areia de uma praia cheia de piratas ladrões em volta. Entendo e vivo, diariamente, cada gota de suor que escorre da testa de Aldo Onesti enquanto conversamos. Me fez lembrar, estranhamente, eu mesma, esperando pela minha primeira publicação no jornal, em 2002. Aluna jovem, de ensino médio, ganhadora de concurso de redação no estado. Da mesma forma que, naquela época, eu não teria muitas formas de chegar aos leitores que pretendia conquistar, hoje, idoso e sem acesso à internet, Aldo Onesti também não tem. Por isso ele procura o jornal. Cadê o bendito gancho nessas horas?

Sentar-se à mesa de um computador, ou na companhia de caneta e caderno, encher uma página com as suas impressões mais íntimas e jogar para o mundo. Isso é o que faz o escritor, parte disso faz o repórter. Parece fácil, mas Onesti e eu sabemos que não é. Ele está impaciente e eu, frustrada, porque quero dar o melhor de mim e não tenho agora. Tudo isso eu pensava enquanto ele estava sentado diante de mim, na cadeira da recepção. Tudo isso turbilhava sem resposta, até que um nome me veio à cabeça: Thayssane.

O poder dos diários, nosso primeiro grande livro

Ou melhor: Thayssane Rocha. Dezessete anos de idade, um diário preenchido e outro pela metade, com a letra da alfabetização ainda. “Na verdade, eu os preenchi com desenhos na maior parte. Nessa época eu queria ser artista plástica sem nem mesmo ter certeza do que era isso. Eu morava numa casa de quintal grande, cheio de árvores. Era legal brincar de se perder na ‘floresta’ para o meu cachorrinho me encontrar. Os anos passaram, me mudei com minha família para outro estado, comecei  nova vida...” Thayssane, tão jovem, é escritora. Das boas, eu diria, se tivesse essa moral pra dar pitaco. 

De volta à cidade, quando Friburgo estava toda olímpica, envolvida pela chama da tocha, Thayssane foi a primeira pessoa a conduzi-la — honraria concedida depois que a moça, que é aluna do 3º ano do ensino médio do Colégio Estadual Eduardo Breder — “fonte de algumas dessas amizades que vão para o resto da vida, como Bruno, Renato, Nina, Dam, Tom, Lipe, gratidão por tudo! Gratidão, professora Margareth Soares, gratidão, diretora Ângela Ferreira!” — ganhou um concurso estadual de redação que selecionaria o anfitrião da tocha. À época, a primeira lembrança que tive foi justamente do meu próprio concurso de redação, também, o tal que me trouxe a primeira vez para as páginas de AVS. Eu quis publicar seu texto, como publicaram o meu, mas passou a tocha, passou a olimpíada, passou o gancho... aquela velha história.

Dois autores tão diversos, duas escritas, duas realidades diferentes, separadas por muitas gerações. Pois eis que, numa onda de redenção, o universo reuniu a nós, Onesti, Blue e Thayssane, num mesmo caderno que fala sobre  vinho — justo o vinho, que tanto dizem ficar melhor com o tempo. O gancho surgiu, afinal. Escritores do mundo, uni-vos, publicai-vos, a todas as horas, que é sempre tempo. 

Simbolicamente, eis a chance de velho e novo se encontrarem. A poesia de Aldo e a crônica vencedora de Thayssane, publicadas, na mesma página. Menos frustrada agora, como escritora e como repórter que conta histórias, estamos interligados, mesmo sem gancho nenhum. “E é esse tal suspense da incerteza, esse sim, é a graça da vida. A cada esquina aprendo algo novo, isso é a graça da vida. A cada dia amo mais os meus — “minha família, minha melhor amiga Lala” —, essa é a graça da vida. A vida é um risco, e se arriscar é uma graça”, finaliza Thayssane.

Nosso céu tem mais estrelas... 
Por Thayssane Rocha

Aquilo que ouviram no Ipiranga não foi um simples soar. Ouviu-se a anunciação do país tropical, livre e campeão que acabara de nascer. Desde os primórdios, o Brasil é a mais linda mistura de raças e sonhos. Seu nome já denuncia o calor do povo, que aqui respira o ar do pulmão do mundo. 
O ouro dessa terra tomado, nossos atletas e paratletas trazem de volta a cada renascer do fogo, posto que é Chama Olímpica. Ouro esse pintado em nosso lábaro estrelado, o das palmeiras onde canta o sabiá. Não há coração que não pulse mais forte ao gorjear o canto da mãe gentil, com o ouro, num ponto mais alto que outras mil. 
Este berço esplêndido, gigante pela própria natureza, emana garra, coragem e vontade de vencer. O azul do mar e da luz do céu profundo foi traçado como um mundo constelado. Ao submergir-se nele, correm nas veias brasileiras a pujança das “águas de março”, que, mais uma vez, içam nossa bandeira num ponto mais alto. 
O brasileiro é completo: repleto de glórias e histórias. Nosso campo é florido. Somos Cielo, Daniel Dias, Alan Fonteles e tantos outros que fazem deste o lugar da Ordem e do Progresso, onde todos somos fortes e capazes. Capazes de compreender que nenhuma estrela é igual, mas todas brilham. 
As vitórias brasileiras vêm dos quatro cantos de verde e hão de pousar no lado esquerdo do peito do Redentor. Lá de cima, Ele abençoará os cinco continentes, que, na Cidade Maravilhosa, reviverão os jogos da cidade dos deuses. Assim, Cristo abre os braços para o mundo, e o Brasil estende os dedos da mão — as cinco regiões — para receber os cinco anéis.

Globalização
Por Aldo Onesti

Encerrem as buscas:
A pátria sumiu.
Não há mais fronteiras
O mundo evoluiu.

Adeus, grandes sombras:
Não há mais heróis
E viva a mesmice
Do agora e depois.

Adeus às nações:
É trapo a bandeira
De povo excluído
Sem eira nem beira.

Não veem os amantes
Do solo natal
Que ondeia o estandarte
Da aldeia global?

Apátrida, exulta:
Bem-vindo és a um mundo
Que te rende juros
A cada segundo.

Banqueiros sem rosto,
Em viagem festiva
Ao leme da nau
De um mundo à deriva:

Admiro e saúdo
O vosso bom tino,
Joguetes que somos
Do vosso cassino.

Inclino-me, ainda,
A quem desmantela
De nobre passado
A herança mais bela.

A quem vaia o Estado,
Ri da tradição.
Só atento, na Bolsa,
À voz do pregão.

Joelhos se dobrem
Perante os globais
Dourados bezerros
Dos tempos atuais.

Desertem-se as casas
Do Deus verdadeiro:
São templos os bancos
E a cura é o banqueiro.

Prezais, passadistas.
A soberania? -
Mais vale a confiardes
Aos braços da CIA.

Encerrem-se as buscas:
No mundo global.
Quem manda é o dinheiro
E ponto final.

Foto da galeria
(Ilustração: Rebeca Marquet)
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