O irlandês que se mudou para Nova Friburgo para estudar orquídeas

Livro do botânico David Miller sobre as espécies da região é considerado até hoje uma das obras mais importantes do gênero no Brasil
sábado, 24 de setembro de 2016
por Ana Blue
Cattleya dormaniana
Cattleya dormaniana

Quando o irlandês David Miller saiu de sua terra natal na década de 50, não imaginava que alguns anos depois estaria morando entre as orquídeas que tanto conhecia de sua infância, da casa de sua avó. Menina dos olhos de quase todos os aficionados por flores, nenhuma outra espécie de flor desperta tamanho interesse dos colecionadores como as orquídeas. Até chegar a elas, Miller ganhou o mundo: morou um tempo em Londres, mudou-se para o Canadá, e de lá foi convidado para um emprego de consultoria no Rio de Janeiro, que aceitou prontamente. Uma vez instalado na cidade maravilhosa, chegou o convite de um amigo: conhecer Nova Friburgo, no interior do estado.

De tão sincera paixão pela família das Orchidaceae, Miller não só topou na hora o convite para conhecer as montanhas do Estado do Rio — as orquídeas da casa de sua avó eram todas brasileiras —, como se estabeleceu por aqui, mais precisamente nas bandas de Macaé de Cima, onde passou a desenvolver projetos de pesquisa, conservação e regeneração da Mata Atlântica pluvial no estado do Rio de Janeiro, junto ao amigo Richard Warren, phD em botânica, e sua esposa Isabel Moura Miller. Aquela região é considerada uma das mais importantes áreas remanescentes do estado. E o objetivo de Miller em defender avidamente a preservação desse espaço fez com que o irlandês agora friburguense não só comprasse grandes extensões de terra naquela área, como também o incentivou a promover campanha entre os amigos para que também comprassem, e que se criasse entre eles mecanismos legais para que estas terras não fossem vendidas ou exploradas no futuro. David morou no local até seu falecimento, em 2011.

As pesquisas e observações do trio em Macaé de Cima foram publicadas no livro “Orquídeas do Alto da Serra da Mata Atlântica Pluvial do Sudeste do Brasil”, fruto de um trabalho de pesquisa e levantamento realizado durante 16 anos e que abrangeu 270 espécies com 66 gêneros de orquídeas com ocorrência acima dos 1000m de altitude. A publicação é, até hoje, considerada uma das obras de maior importância no estudo das orquídeas. Miller publicou ainda um segundo livro, “Serra dos Órgãos – sua história e sua orquídeas”, que foi para além de Friburgo e abrangeu estudos em outras regiões do estado.

Cattleya dormaniana: a orquídea púrpura de Friburgo

“Era realmente uma visão fantástica. Uma visão de provocar um suspiro profundo e deixar qualquer um de boca aberta; uma visão que provocava um efeito que já havíamos sentido várias vezes quando encontramos uma planta rara em total florescimento pela primeira vez”. Assim começa o relato de Miller e Warren publicado no Boletim Caob (Coordenação das Associações de Orquidófilos do Brasil) nº 29, em julho de 1997, a respeito do encontro com a Cattleya dormaniana. A orquídea, de pétalas rosadas, pontudas e levemente onduladas, foi trazida à atenção dos orquidófilos pela primeira vez na Inglaterra, em 1879, após ser encontrada nas montanhas do Rio e vir a fazer parte da coleção de um senhor chamado Charles Dorman — daí o nome dormaniana. Continua o relato: “Enquanto Watson [Willian Watson, botânico inglês], em 1903, nem mencionava a planta e Pabst [Guido Pabst, botânico brasileiro] a coloca como vinda da floresta tropical montanhosa do Estado do Rio de Janeiro, Withner [Carl Leslie Withner, botânico norte-americano] dá seu local de origem como sendo ‘as montanhas cobertas de nuvens’”. Nova Friburgo!

Não seria fácil encontrá-la. Miller achou indivíduos da Cattleya depois de mais de dois anos de expedição por entre a mata densa. “Nossas antenas estavam em alerta total e passamos dois anos sutilmente questionando as pessoas da região sobre onde poderiam ser encontrada uma ‘flor marrom e púrpura’. Mas até encontrá-la, que extraordinária coleção de orquídeas e outras plantas encontramos! Quatro espécies não reconhecidas de Pleurothallis spp; duas Octomeria novas para nós, grandes quantidades de Cirrhea dependens e Xylophillum variegatum, uma nova Dichea, uma nova Maxillaria, um novo Epidendrum, duas espécies de Vanilla, duas espécies de Cryptoporantus, grupos maciços de Laelia crispa, Oncidium cruciatum, Oncidium ramosum e várias plantas de Dipteranthus grandiflorus... Muitos jardins botânicos deste mundo não mostram nem de longe a riqueza em vida epífitica daqueles dois ou três hectares de subvale em Nova Friburgo...”

Um dia, depois de haverem percorrido dez metros ao longo de uma rocha, com bastante dificuldade, Miller e Warren se depararam com a primeira e melhor colônia de Cattleya dormaniana. “Umas 18 flores totalmente abertas, três hastes mostrando flores duplas. Que fantástica visão, pela qual havíamos esperado tantos anos!”, continua o relato. “Uma bela orquídea considerada extinta na natureza bem na frente de nossos olhos, muito saudável, numa esplêndida exibição”. Uma espécie endêmica de Nova Friburgo, rara. Nascida no melhor lugar do mundo para se nascer: na mata densa e preservada da cidade das flores!

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TAGS: Meio Ambiente
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