Monólogo do cadeirante

Um artigo de Antonio Fernando, jornalista que assina as colunas Impressões e Radar, de A VOZ DA SERRA
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
por Antonio Fernando
Monólogo do cadeirante

Olho para o céu numa tarde quase primaveril em Nova Friburgo. Tarde nebulosa, com nuvens tapando o sol e uma incerteza se vai ou não chover me invade, estou na rua, na praça quase deserta, longe da cuidadora enquanto aguardo-a fazendo algumas compras. Para não precisar atravessar ruas sem sinais, carros desatentos e motocicletas velozes, espero sozinho a sua chegada. Na minha impossibilidade reflito o que se passa ao meu redor. Vejo gente apressada, crianças felizes, idosos caminhando lentamente, alguns cadeirantes com o natural mau humor pela prisão sobre rodas, sem movimentos, sem perspectivas. Calado e quieto analiso a condição nada agradável de andar sem andar, invejando os passos de transeuntes, do pedalar das bicicletas, das subidas e descidas rápidas num meio-fio qualquer. Vida pela metade, concluo. 

Um psicólogo ou qualquer um espiritualista logo teria a solução mágica do conselho: “mas você está muito bem imagine se fosse pior, quanta gente que tem condições piores, muitas vezes deitada numa cama, sem movimentos”. É, pode ser, mas acontece que este sou eu e não o outro. 

Numa simples avaliação posso constatar: cadeirante não tem vida boa em Nova Friburgo. As dificuldades estão por todos os lugares, basta ver com os olhos de um cadeirante. Poucas são as iniciativas na cidade em benefício dos deficientes ou, para ser moderninho, dos “portadores de necessidades especiais”. O poder público adota como padrão de acessibilidade as famosas rampas de acesso em algumas ruas. Porém não são o bastante. As calçadas, por falta de sensibilização dos proprietários e inércia do poder público — que não pune quem trata o patrimônio com displicência — são desniveladas ou esburacadas, dificultando a circulação até mesmo dos pedestres “normais”. Chegar ao interior das lojas é um martírio. Aos bancos, depende da presteza de um funcionário para abrir uma porta. Acessar os órgãos públicos idem. Escadas íngremes, degraus elevados, portões fechados. A principal praça da cidade, com aqueles blocos hexagonais, não transmite nenhuma sensação de prazer e descontração, impondo um sacolejar sem fim. Sem falar na acessibilidade a espaços culturais, bares e restaurantes diversos.

Quando uma cidade é acessível para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, é acessível para todos. Essa é a visão comum de gestores públicos, organizações da sociedade civil e cidadãos que se preocupam com o bem-estar coletivo. Quem debate o futuro das cidades inclusivas ressalta quatro grandes dificuldades: pedestre colocado de forma secundária no ambiente urbano; falta de compromisso político; falta de exemplo da câmara municipal com sugestões e leis facilitadoras; gestão e fiscalização ineficientes. E, principalmente, se as pessoas não entenderem que é possível construir uma cidade acessível. 

O município de Uberlândia, em Minas Gerais, com 600 mil habitantes, é um modelo a ser seguido pelas demais cidades. Possui rampas de acesso em todas as esquinas, no centro e nos bairros, sem distinção: 100% da frota de ônibus com elevadores para quem tem dificuldade de locomoção. Piso tátil para orientar deficientes visuais em todas as calçadas, terminais rodoviários, lojas e prédios públicos. Lá, cada projeto novo de rua, prédio ou loteamento só é aprovado se tiver plano para facilitar a mobilidade dos deficientes.

Esse programa de acessibilidade existe há 20 anos, e vai muito além da infraestrutura. É um exercício diário de cidadania que começa nas escolas municipais, onde desde cedo alunos e professores aprendem a conviver com as diferenças: linguagem de sinais para quem é surdo poder acompanhar a aula; máquina de braille, para quem é cego poder anotar tudo; rampas para alunos cadeirantes e usuários de muletas e carinho, muito carinho.

O que falta, fundamentalmente, é consciência e vontade política. Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) existe uma receita básica para ampliar a acessibilidade: rampas com pouca inclinação, no máximo 8%, e sempre construídas da porta para dentro, para não obstruir as calçadas. Escadas com corrimão, piso tátil, cerâmicas com retângulos e bolinhas em alto relevo e semáforo sonoro para guiar deficientes visuais. Transporte público com elevador e espaço exclusivo para cadeirantes, facilidades que podem fazer diferença não só para quem hoje precisa.

O que a população esquece é que todos envelhecerão — aliás, é a vontade de todo mundo. E a pessoa, quando ficar velha, terá perda de mobilidade física, sensorial, visual, auditiva. Então, as pessoas não se preocupam com o futuro. 

Meu trabalho, assim como o meu “jeito Antonio de ser”, agrada e desagrada. Convivo com a insensibilidade típica das pessoas que vieram ao mundo em brancas nuvens. Sou polêmico apesar da minha mansidão. Mas tem gente que prefere os cordeirinhos que vivem sem atrapalhar. Comigo não. A vida é muito curta para não imprimirmos a nossa marca. Precisamos registrar a nossa presença, justificarmos porque estamos neste mundo. Às vezes gostaria de ser diferente, mas quando olho ao meu redor e vejo a indiferença campeando, me convenço do meu estilo. Vou com ele até o fim.

 

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