Machado de Assis e Nova Friburgo

sexta-feira, 28 de novembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra
Machado de Assis e Nova Friburgo
Machado de Assis e Nova Friburgo

Muitos friburguenses não têm conhecimento deste fato, mas Machado de Assis, um dos maiores escritores de seu século, esteve por três vezes em Nova Friburgo, estabelecendo com a cidade um vínculo bastante estreito. Passou, inclusive, a recomendar a seus amigos que passassem temporadas aqui.

No ano em que se registra o centenário do Bruxo do Cosme Velho, Nova Friburgo vem sendo citada em todas as reportagens que têm sido feitas sobre Machado. A maioria destaca o carinho com que muitas vezes ele se referiu a nossa terra e ao fato de Memórias Póstumas de Brás Cubas – considerado um marco do realismo e com o qual o autor deu novo rumo às suas criações literárias – ter sido, de certa forma, gestado em nossa cidade.

Para quem não sabe, vale destacar que, em fins de 1879, aos 39 anos, cansado, magro e abatido pelo excesso de trabalho na imprensa e como funcionário público, Machado de Assis tirou licença médica e passou três meses na cidade com sua esposa Carolina. O casal ficou hospedado possivelmente no Hotel Engert, embora não haja comprovação do local. Nessa altura da vida, Machado já escrevia artigos para jornais e revistas, tendo também publicado muitos contos, peças teatrais e até romances. Este retiro forçado foi, porém, de grande importância para sua obra, que tomou um novo vulto e uma nova dimensão a partir daí. Foi aqui, entre nossas montanhas, caminhando pelas nossas ruas, respirando a pureza do nosso ar, que o célebre escritor recuperou suas forças e sua energia.

Quando retorna ao Rio, escreve, então, Memórias Póstumas..., que inaugura uma nova fase de sua vida – de romancista romântico, passa a adotar uma técnica menos sentimentalista e, certamente, mais inspirada e importante. O recolhimento em Nova Friburgo foi, segundo todos os estudiosos de sua obra, fundamental para sedimentar ainda mais sua carreira literária.

“Estimei ler o que me diz sobre os bons efeitos de Nova Friburgo”, escreveu Machado em correspondência trocada com seu amigo José Veríssimo em dezembro de 1897, ao recomendar-lhe uma temporada aqui. “A mim esse lugar, para onde fui cadavérico, há uns 17 anos, e donde saí gordo, hei de sempre lembrar com saudades. Estou certo de que lucrará muito, e todos os seus também, invejo-lhes a temperatura...”

Em 1901, os dois escritores trocam nova correspondência, onde Machado ressalta, mais uma vez, as boas lembranças que tinha de nossa cidade. “Nova Friburgo é terra abençoada. Foi aí que, depois de longa moléstia, me refiz das carnes perdidas e do ânimo abatido. A terra é tão boa, que consegui engordar como nunca, antes nem depois”. Em 1904, Machado de Assis esteve novamente em Friburgo, visando a convalescença de Carolina. A partir daí, terminaram as visitas do escritor a nossa cidade.

Professora friburguense elabora tese sobre a obra de Machado de Assis

A friburguense Maria José Vieira, mestre em Letras Neolatinas pela Universidade Federal Fluminense (UFF), se debruçou durante anos sobre a obra de Machado de Assis. Em sua tese de mestrado – História e consciência de nação em Machado de Assis – Maria José faz uma leitura da segunda fase da obra do escritor, tomando como base os cinco romances principais – Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Ayres – além de algumas crônicas e contos.

Professora de português e literatura, a obra de Machado de Assis sempre interessou de perto a pesquisadora. Não apenas do ponto de vista de documento histórico, mas também de técnica de narração. Apaixonada pelo escritor, Maria José diz que lendo Machado de Assis vamos encontrar coisas novas sempre.

Nesta entrevista para A VOZ DA SERRA, Maria José fala de sua admiração por Machado de Assis e garante: “Ler Machado é uma obrigação para qualquer estudante e qualquer pessoa que queira se intitular redator”.

Entrevista

A VOZ DA SERRA – Por que escolheu Machado como foco de sua tese? Maria José Vieira - Basicamente porque sempre encontrei nele, de uma forma muito intensa, questões com as quais eu também me preocupo muito: a ética, a sociedade, a história, o que pensamos sobre nossa nação, nossa identidade, enfim. Machado foi um crítico implacável dos costumes, da sociedade do século 19 e em cada trecho seu estão presentes as contradições internas da sociedade brasileira de sua época, quando passávamos da monarquia para a república.

AVS - Qual a sua visão de Machado de Assis?

Maria José - Machado era muito estudioso. Lia muito, estava sempre antenado sobre tudo. Foi também um contista e um cronista de primeira linha, um grande jornalista. Escreveu poesia, peças de teatro, críticas teatrais. Só romances, foram nove, mais um número infinito de contos, artigos e crônicas. O mais interessante é que ele era perfeccionista e, por isso mesmo, ler Machado de Assis representa uma obrigação para qualquer estudante e por qualquer pessoa que pretenda se intitular redator. Basta dizer que ele revisou quatro vezes Memórias Póstumas. Existem quatro versões do romance, desde a primeira publicação até o escritor dar, finalmente, a obra como pronta.

AVS - Há muitos mitos em torno da biografia de Machado de Assis. Você poderia citar alguns deles?

Maria José - Machado era de uma família humilde, mas não miserável como se diz. Ele nasceu na chamada Chácara do Livramento, no centro do Rio de Janeiro, onde a família morava como agregada. Seu pai era neto de negros alforriados e trabalhava como pintor. A mãe, natural dos Açores, era o que antigamente se chamava do lar, mas também bordava para fora e dava aulas em casa. Segundo consta, Machado, inclusive, aprendeu as primeiras letras com ela. Alguns jornais informam que ela teria sido lavadeira, mas esta informação não procede. Ele era afilhado da proprietária da Chácara do Livramento e, como tal, acabou tendo uma condição social e cultural muito boa. Desde menino, foi muito interessado em leitura, o que acabou motivando-o para o estudo de Letras. Passava horas lendo, visitando bibliotecas e livrarias. Por outro lado, trabalhou desde menino como caixeiro, tipógrafo e foi evoluindo até publicar seu primeiro poema no próprio jornal onde trabalhava.

AVS - Na sua opinião, como despertar nos jovens o interesse pela leitura de Machado de Assis?

Maria José - Criou-se um mito de que Machado é difícil, é chato, mas na verdade isso não confere. Acho superimportante fazer um trabalho visando desmistificar esta história de que ele é hermético e, pior ainda, datado. Embora tenham sido escritas há mais de um século, as obras de Machado têm tudo a ver com o nosso tempo. Eu até fiz uma releitura do conto Sereníssima República, onde tudo o que acontece é tão atual, que poderia perfeitamente ter sido escrito hoje. O texto machadiano é inteligente, elegante, correto do ponto de vista lingüístico. Afinal, trata-se de um texto escrito por um gênio, mas acho que é só começar para perder o medo de Machado. Basta que os professores estimulem os alunos a conviver mais com suas obras para ganharem mais intimidade com ele.

AVS - Como era o Brasil no tempo de Machado?

Maria José - Todo o texto machadiano foi produzido entre o império e a república. Na verdade, sua literatura está voltada para encontrar o perfil da nação brasileira, recém-independente de Portugal. Não é à toa que se diz que ele iluminou não apenas seu século, como também o século 21. Machado viveu mais da metade de sua vida no Brasil Império, escravocrata, sem nunca perder o foco no futuro que se apresentava. O Brasil desejava se colocar neste tempo, espelhando-se nos avanços europeus, mas ao mesmo tempo encontrava-se preso a seu atraso, aos padrões da época. Por isso mesmo, a sociedade que Machado retrata é cheia de contradições. Quer ser liberal, mas ao mesmo tempo é patriarcal, escravocrata. Em meio a isso tudo, Machado de Assis tenta encontrar a identidade de seu país.

AVS - Machado de Assis e Carolina não tiveram filhos. No livro Brás Cubas o personagem afirmava não querer “deixar o legado da miséria humana para ninguém”. Há quem afirme ser Brás Cubas, de uma certa forma, o alter ego do escritor. O que você tem a dizer sobre isso?

Maria José - Não tenho elementos para fazer uma afirmação como esta. Brás Cubas é um capitalista volúvel, que se acha acima do bem e do mal, acima da lei, que manipula as pessoas de acordo com seus interesses. Este romance é uma representação artística da sociedade e dos valores da época. O que posso afirmar é que ele era um gênio, pois conseguiu transpor todos os limites. De menino pobre, descendente de negros, epilético, gago, Machado de Assis conseguiu chegar aonde chegou. E como autodidata, vejam bem, pois não há nada comprovando que ele tivesse freqüentado escolas, falava e escrevia fluentemente várias línguas. No fim da vida, estava estudando grego...

AVS - O mundo reconhece Machado como um gênio?

Maria José - Sim, talvez como um dos maiores escritores do mundo e, certamente, como o maior escritor brasileiro. O que ele anunciava em Memórias Póstumas, escrito em 1819, era algo surreal. O narrador, Brás Cubas, é um defunto, já começa por aí. Brás Cubas não tem medo de falar porque está morto. Com isso, ele desmascara e revela todas as mazelas da sociedade da época, como a hipocrisia, por exemplo. Era uma sociedade emergente, mas emergente para poucos, porque a maioria era ainda escrava, proletária. Machado tinha sensibilidade para perceber tudo isso e inscrever na sua obra. Só que tinha de fazer isso de uma forma indireta, porque, ao mesmo tempo, precisava ser aceito naquela sociedade por causa de sua origem. E ele faz isso de modo brilhante, através de metáforas, até de algumas fábulas e ficções.

Dom Casmurro: ainda hoje, de

uma atualidade impressionante

Discute-se muito a suposta traição, o adultério de Capitu, mas, na verdade, não é só isso que está inscrito em Dom Casmurro. E há um enigma sobre este adultério, porque na verdade pode-se fazer várias leituras do romance sem que fique provado se Capitu traiu Bentinho ou não.

O romance é construído do ponto de vista do Bentinho, isto é, do suposto traído que no fim da vida faz uma retrospectiva desta, tentando entender o que lhe aconteceu. O personagem é um advogado que já foi seminarista e teve uma educação carregada de conceitos típicos da sociedade da época. Já Capitu não é só uma mulher. Ela representa o novo, o moderno, numa sociedade superconservadora e que considera legítimo matar as mulheres adúlteras. Já Bentinho tinha medo de ser feliz plenamente e isso fica claro em seu romance.

Maria José cita o texto de um jurista que analisou o suposto adultério de Capitu sob o ponto de vista jurídico. De acordo com ele, haveria elementos no romance suficientes para que ela fosse considerada adúltera, podendo ser condenada a, no mínimo, seis meses de cadeia. E mais: caso Bentinho a matasse, ele não seria preso nem condenado. “Naquela época era assim mesmo, homem traído matava”, diz.

Maria José cita um trecho emblemático do livro, quando Bentinho vai assistir à ópera Otelo e que mostra, de uma certa forma, o pensamento de Machado e do próprio Bento. “No fim da tragédia, quando Otelo mata Desdêmona e depois se suicida, todos os espectadores presentes se levantam e aplaudem. Só Bento não levanta e não aplaude, ou seja, mostra claramente que não era a favor de um desfecho daqueles”, conclui a pesquisadora. Em outras palavras, Machado sempre foi muito avançado para a sua época.

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