Ler a palavra, ler o mundo

A festa literária de Nova Friburgo se abre em um momento oportuno: está em discussão a reforma do ensino médio
sexta-feira, 07 de outubro de 2016
por Eliana Yunes
Eliana Yunes: “Cada língua aprendida é uma janela aberta”
Eliana Yunes: “Cada língua aprendida é uma janela aberta”

Esta festa literária de Nova Friburgo se abre em um momento oportuno: está em discussão a reforma do ensino médio. Muitos e experientes cidadãos têm oferecido sua contribuição para aprimorar a vida das novas gerações. O debate envolve questões de conteúdo e disciplinas, questões pedagógicas e de didática, questões de recursos, de qualificação dos professores, seus salários, e de seu lugar na vida pública e social das cidades.

São muitas as reflexões: é possível excluir a educação física e artística da vida dos jovens? É possível retirá-los do debate sociológico e filosófico que envolve seu presente e seu futuro? Vivendo na América Latina, é interessante abrir mão do domínio do espanhol? Basta conhecer matemáticas e ciências para ter habilidades lógicas e avançar em tecnologias aplicadas? Mas, sobretudo: é possível aprender qualquer coisa sem dominar sua língua, onde mora a expressão dos desejos e a produção dos sentidos? E o que é a língua, o que são as linguagens, se não os sistemas pelos quais o mundo e a vida ganham forma e geram conteúdos, ideias, possibilidades, alternativas, diversidade?

A língua materna e as linguagens são o solo do pensamento, o suporte da comunicação e das trocas afetivas, sociais e políticas. É de Wittgenstein, filósofo austríaco do século 20, professor em Oxford, Inglaterra, uma expressão síntese do que quero dizer: “O tamanho do mundo é o tamanho da sua linguagem”.

Em nosso cotidiano, no convívio pessoal e nos meios de comunicação, verificamos como para além dos erros gramaticais, as pessoas dizem coisas em que se contradizem. O que deveríamos prover como alteração fundamental na educação para que a sociedade pudesse estar habilitada a viver sua diversidade cultural, de modo ético, responsável e generoso?

Olhando meu passado familiar e de estudos, vivido nesta cidade, que me lançou no compromisso político de me dedicar à formação de leitores pelo país e mundo afora, insisto: “ler não é ler”, como disse o mestre Affonso Romano de Sant’Anna ao então ministro Antônio Houaiss —“ler é LER”. O aprendizado da leitura é um equívoco até para acadêmicos...

As experiências culturais que constituem a vida dos povos tomam forma e se tornam expressão na língua, para se desdobrarem em linguagens e comunicar história e pensamento. Saber ouvir, falar, ler e escrever é a condição para participar da humanização que nos pode curar da brutalidade, da violência, da perversidade desumanizante, e fazer-nos senhores de um mundo melhor.

Em poucas palavras: saber ler e escrever — os sons, as imagens, o outro, o bem desejável, os dons, as descobertas — é o único modo de nos colocarmos no meio dos homens, como gestores da vida comum. O mundo ficou pequeno, mas não somos capazes de cuidarmos com qualidade daquilo que não entendemos, daquilo a que não somos capazes de responder diretamente, com nossa leitura e conduta.

Se nossos MEC e MinC assumissem corajosa e revolucionariamente que TODA a Educação Infantil e a 1ª fase do Ensino Fundamental deveria ser construída sobre um programa de leitura (ouvir, falar, ler, escrever), denso e intenso em linguagens (do corpo, tecnológica, literária, artística) e de exercícios lógicos (operações básicas e práticas, lúdicas e de colaboração), nossos filhos chegariam à segunda fase, ao ensino médio, preparados para ajudarem a si mesmos e aos outros na construção do conhecimento e do saber. A escola seria outra, a sociedade nova.

O trato com a palavra ouvida, pensada, lida, dialogada é a maneira mais viva de conhecer o mundo e a sociedade, desde pequenos. Por isso contamos histórias às crianças... e aos adultos! Um programa de qualidade para uso da palavra e de múltiplas linguagens pode ser de encantamento pela vida, pelo convívio, sem uma linha gramatical “decorada”, sem uma regra explícita. Ler (o oral ou o escrito) ensina a refletir, a analisar, a criticar, a argumentar, a expressar o justo e o injusto, o oportuno e o inoportuno, o dever e o direito, na vida curta e impossível de se viver como se fossemos autossuficientes.

Cada língua aprendida é uma janela aberta para o mundo. Pela leitura — primeiro literária, artística, logo lógica e científica — podemos ter a revelação de quem somos ou podemos ser, a descoberta e construção das possibilidades que a vida, há milênios, entesoura como matéria e espírito para que sejamos capazes de aceitar o desafio de quem nos criou: de sermos semelhantes a Ele, donos de uma palavra que crie mundos belos e justos.

Somos seres pensantes enquanto acordados e seres imaginantes, também quando dormimos. Se a educação nos fizer funcionar mecanicamente, como peça de uma engrenagem, não haverá a experiência animadora do humano que identifica nossa especial condição.

Lendo o mundo, e portanto pensando, nos tornamos sujeitos que dividem a responsabilidade de produzir sentidos para qualificar a ciência e o saber que nos dão a “vida boa” de que falava Aristóteles e não a “boa vida” que nos mutila.

Que esta seja só a primeira das festas literárias em que a população friburguense ajude-se a pensar suas questões, ao alcance dos afetos e da inteligência. 

Sem leitura da palavra e do mundo não há crítica, não há ética e dificilmente haverá felicidade. Porque sujeitos não são os que acumulam, mas os que entendem e compartilham os dons da beleza e do bem.

Eliana Yunes
PUC-Rio
Cátedra Unesco de Leitura
Instituto Interdisciplinar de Leitura

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