"A importância das coisas no poema muda de acordo com a gente"

Em entrevista À VOZ DA SERRA às vésperas da Flinf, Omar Salomão fala de poesia e sobre o ofício de escrever
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
por Ana Borges
"A importância das coisas no poema muda de acordo com a gente"
Omar Salomão, presença confirmada na Festa Literária de Nova Friburgo - Flinf 2017, é poeta e artista plástico, nascido no Rio, em 1983. Formou-se em comunicação social (PUC-Rio), cursou cinema e design gráfico. Acaba de lançar “Pequenos reparos” (José Olympio, 2017), seu terceiro livro, “em que os poemas se relacionam a manuscritos, fragmentos, desenhos e fotografias”. Antes, durante e depois de publicar seus dois primeiros trabalhos - ‘À Deriva' (Dantes, 2005), e ‘Impreciso’ (Dantes, 2011) - participou de antologias poéticas (como a digital ‘Enter’, de Heloísa Buarque de Hollanda), formou a banda carioca Vulgo Quinho e Os Cara, desenhou, fotografou, pintou.

"aos poucos, às vezes ao longo da vida, você vai decifrando (o poema)"
Nas artes plásticas, descobrimos o poeta multimídia, um artista em permanente investigação sobre a relação da palavra com a imagem. Como neste presente momento em que está inaugurando (inaugurou na sexta, 19) na Silvia Cintra Galeria de Arte (Gávea, Rio), a exposição “Você vê os pássaros? Sempre quis que você visse os pássaros daqui”, na qual apresenta uma série inédita de pinturas, esculturas, cadernos de desenhos e fotografias.

Envolto por tantos afazeres, Omar deu um jeito de nos atender para essa entrevista, feita por email, em meio à finalização da montagem de sua exposição. Enquanto o aguardamos na Flinf - no sábado, 28, às 20h, no Casarão do Barão, adiantamos para o leitor uma e outra coisa desse sujeito singular, ao mesmo tempo, um artista plural, que enriquece o universo cultural brasileiro e encanta com seu jeito carismático.

Um dia, você falou mais ou menos assim, numa entrevista: “Acho letras um saco. A gente tem que ler, é claro, mas, e a vida, como fica? Cresci muito fazendo comunicação social, convivendo com pessoas de diversas áreas”. O que acha disso, hoje?

Hahaha, não lembro o contexto em que eu disse isso. Lendo hoje essa frase, entendo como uma tentativa de dizer algo como um cuidado pra não se esquecer da vida, da maravilha que é o nosso redor. Eu sou míope, um pouco míope, o suficiente para conseguir andar na rua sem óculos, mas sem ter ideia de quem acena do outro lado da rua. O que também quer dizer que eu vejo muito bem de perto. É uma delícia ficar vendo as coisas de perto, os poros do papel, as marcas, a letra falhada, detalhes. Quando levanto os olhos, o entorno está todo borrado, dá vontade de voltar ao papel. Hoje, leio, como isso, enxergar os vestígios, os rastros, se potencializa quando abrimos o nosso olhar - para o que foi, para o que há, para o que pode ser. Tento fazer leituras de abertura, ler como quem conversa, conectando, potencializando. Acho que tem que seguir.

Comente a sua formação, os cursos….

Jornalismo, publicidade e, no caso da PUC-Rio, cinema, são profissões que demandam muito, jornadas intensas. É um curso potente, que atravessa muitos conhecimentos humanos (depois aprofunda-se onde houver interesse) e de extrema atualidade. Isso é muito interessante, mas também pode cair muito facilmente numa superficialidade - como qualquer coisa, aliás.

Quanto de comunicação há na sua obra?  

Nunca pensei o meu trabalho pelo viés da comunicação, tenho meus atravessamentos de dialogar com o inevitável - os anúncios e as notícias. Mas não sei se encontro algo específico. Eu sou bem caótico na verdade, não sei se sou claro como uma comunicação pede. Não tento ser obscuro, é uma bobagem querer ser. Eu acredito no mistério (ao menos nas artes), se eu entregar tudo, explicar tim-tim por tim-tim, o que sobra ao leitor? Por isso essa relação de imagens, desenhos, rabiscos, versos, que não expliquem, interpretem um ao outro. Ao contrário, tem que abrir espaço, portas, respiros, para que possamos entrar no texto. É só quando não dá mais pé que precisamos nadar, e nadar é tão bom.

Acontece de você ir anotando, escrevendo ao léu, meio por instinto, e depois, ao reler, não saber direito do que se trata?    

Claro. Anoto muito no caderno, em livros, no celular. Volta e meia não lembro o contexto, pra onde eu queria seguir. Mas aí é possível reinventar, tirar algum caldo, alguma frase que desenvolva. Se parecer potente, eu guardo, fico de olho mesmo quando não faço ideia do que fazer com aquilo. Às vezes vira algo, outras, eu esqueço.

 

O leitor precisa “entender” o que o poeta quer dizer para uma obra ter reconhecimento  literário?

O que o poeta quer dizer é só mais uma leitura. Como tantas coisas, nada, um poema pode não te dizer nada. Muitos poemas são simplesmente chatos. É claro, que vale sempre a pena investigar, ler com atenção. Às vezes tem uma leitura ali, escondida, que é única, que emociona, que transforma. Poesia, muitas vezes, requer tempo. Acho tão bom quando o poema tem camadas diferentes de leitura. E aos poucos, às vezes ao longo da vida, você vai decifrando. Essa sensação que um poema pode criar é tão forte, é algo que te acompanha, e a importância das coisas no poema muda de acordo com a gente.

Você tem um sorriso e um olhar próprios de uma pessoa feliz. Por alguma razão, poetas são vistos como pessoas algo angustiadas, fugidias. Existe uma palavra, frase, citação, capaz de traduzir a criatura que você é?     

Hahahaha, mas eu sou uma pessoa angustiada! Uma coisa não exclui a outra. Merleau-Ponty (Maurice, filósofo, poeta, 1908-1961) tem essa frase (que meu pai [Waly Salomão] citava): "O escritor, enquanto profissional da linguagem, é um profissional da insegurança". E o poeta ainda mais, porque a poesia é aberta. Muitos poetas são tímidos, talvez por isso. Eu já fui muito tímido, mas consegui romper com a timidez (às vezes ela volta forte, é estranho). Acho que eu só fui me entendo como um artista poeta quando vi que era por esse caminho que eu gostava de transitar, de me comunicar. Fazer minhas invenções, criar meus universos, meus olhares. Eu entrei em comunicação social pra fazer jornalismo - gostava muito de ler colunas no jornal - lembro de algumas crônicas lindas do Zuenir Ventura. E talvez fosse isso que eu estava atrás, das crônicas, de uma liberdade de ver e pensar o mundo, um tempo próprio, no meio daquele ritmo pausterizado do jornal. E o colunista ali, observa e impõe seu tempo. A crônica perdeu espaço no jornal, acho que uma parte se desenvolveu na poesia. E não estou falando em estar alheio, muito pelo contrário, apenas o tempo é outro.

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Dados ao ar = dardos de Omar

por Fred Coelho

Muitas vezes, as conversas acerca de imagens e palavras atravessam abstrações históricas. No caso do trabalho de Omar Salomão, elas ganham carne, aço, traço e asas.  Seus olhos vivem escavando as brechas das coisas na busca dessas bordas entre o que se mostra e o que se diz. Suas mãos sabem que um traço sempre tem o peso certo da ideia. Assim, um emaranhado de linhas formado pelas águas do mar da Bahia transcende sua bidimesionalidade azul. Uma dado torna-se uma cor. A tinta preta bruta torna-se pássaro leve.

Uma exposição é sempre um duplo corte no sentido da palavra: expor seus trabalhos e se expor aos outros. Demonstrar o que você está fazendo, registrar por onde andam suas ideias. Na visada que temos aqui, Omar nos apresenta um percurso pessoal e intransferível. Acumula papéis, anota pedaços de ideias suas e de outros, estuda a história da arte através de variáveis peculiares como o suspiro, o vazio, a pausa, a repetição. Transforma tudo em “superfícies que não descansam”, como diz o próprio sobre as páginas e páginas que preenche diariamente. Faz dos cadernos uma afirmação sólida de um momento, descartando a transição do processo. Caderno encerrado, caderno-obra.

Nesse olho com fome de tudo, um artista poeta articula doçura e revolta. A escala do mundo de Omar é ampla. O corte metálico das concertinas são engolidos em caixas, envelopados em silêncios, ativados por imagens do sagrado popular. No deslocamento superficial da forma espiralada e cortante, Omar também desloca o sentido brutal do objeto que cerca as coisas no intuito de proteger patrimônios e machucar invasores. A violência lateja silenciosa em cores e formas.

Tudo é sintetizado nos lances de dados que demarcam espaços efêmeros. O que fica é a cor borrifada a registrar o gesto aleatório do objeto em giro no ar e impacto no plano. Como está, fica. Nesse acaso, Omar monta pequenas constelações pessoais. Inventa pintura ao atravessar a história da poesia. Materializa uma frase que inaugura a invenção da palavra no espaço. Palavras viram dardos pictóricos e perfuram nossos olhos até o fundo do céu de Omar.

 

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