ENTREVISTA - Machado de Assis

por Pierre Moraes
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
por Jornal A Voz da Serra
ENTREVISTA - Machado de Assis
ENTREVISTA - Machado de Assis

Ana Borges


Pierre da Silva Moraes é formado em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia Santa Doroteia (FFSD). É professor do Colégio Anchieta, entre outros das redes privada e pública. 

Esse moço apaixonado pela profissão tem amor genuíno pelo conhecimento, em geral, e pela literatura, em particular. Dedica-se com afinco ao estudo da vida e obra de autores de nossa literatura, com destaque para aqueles que têm vínculo com Nova Friburgo, como é o caso, entre outros, de Machado de Assis, Casimiro de Abreu e Carlos Drummond de Andrade. 

Pierre Moraes nasceu para ser educador. Como tal, ainda jovem se indignou com a forma como a educação era (é) tratada no país. Sua porção política o levou a tornar-se uma semente de transformação nesse cenário desolador. Eleito vereador duas vezes, cumpre no momento o 2º mandato. Inspirado na "inquietação produtiva de Darcy Ribeiro e de Cristovam Buarque, e na coragem e ações coerentes de Leonel Brizola”, Pierre cita Machado: "(...) mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma coisa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia.” (Ressureição, Advertência da 1ª edição). Entre tantas maneiras de render homenagem ao escritor, falecido em um 29 de setembro, Pierre Moraes escolheu falar de sua admiração pelo mestre da língua portuguesa.  


LIGHT – Por que a obra de Machado de Assis continua sendo tão ou mais lida ainda, 100 anos após a sua morte?

PIERRE MORAES - Machado de Assis é célebre em muitos aspectos. Ele foi um prenunciador da modernidade literária. Sua obra não se limita ao tempo, é atual, seja em temas, seja em procedimentos narrativos. Basta o leitor ajustar traços da realidade contemporânea e verá pelas ruas, no trabalho e na família, personagens machadianas transitando e convivendo entre nós. Em síntese, a análise psicológica que ele faz do comportamento humano é simplesmente precisa e atemporal, portanto, digna de ser apreciada por todo aquele que busca uma interpretação mais apurada das relações sociais. 


Como Machado, um homem pobre, mulato e apenas alfabetizado, com o agravante de nascer em um país escravocrata, foi reconhecido em vida como um intelectual respeitado, e posteriormente, como um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos? 

Realmente. Machado nasceu em 1839, no morro do Livramento, num Brasil escravocrata. Além de pobre e mulato, era gago e por volta dos 30 anos descobriu-se epilético. Quer dizer, aparentemente, no que dizia respeito ao futuro, tudo lhe era desfavorável. Como se não bastasse, ficou órfão de mãe aos 10 anos e não teve acesso à educação clássica da época. No entanto, nada disso o impediu de se tornar o Machado que conhecemos. Aliás, e sendo atual, aplicou a si mesmo orientação que posteriormente viria a dar ao jovem poeta Francisco de Castro, em agosto de 1878: "... aponto-lhe o melhor dos mestres, o estudo; e a melhor das disciplinas, o trabalho. Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma com que se conquista o triunfo”. 


Esta foi, portanto, a base de sua formação...

Machado foi um homem talentoso, com o dom natural para as letras. E teve a sorte de se ver cercado de mestres, de viver no ambiente onde poderia se desenvolver na escrita. E ele lia, lia muito. Por volta dos 15 anos estreou como poeta. Trabalhou como aprendiz na Tipografia Nacional, onde conheceu o romancista Manuel Antônio de Almeida, de quem se tornou próximo; e desempenhou a função de revisor de provas na tipografia de Paula Brito, editor e jornalista, proprietário de uma livraria, que era o centro da vida literária na época. Nesse período, Machado manteve contato com grandes autores da época, como Casimiro de Abreu, que, aliás, estudou em Friburgo. Machado, então, foi intensificando a produção regular em outros periódicos, variando gêneros, publicando também crônicas, peças de teatro, traduções e críticas literárias, e, à medida que ganhava experiência, aumentava sua notoriedade como escritor.


E na vida particular, foi feliz, bem sucedido, como na carreira profissional?

Ele se casou aos 30 anos, em 1869, com a portuguesa Carolina Augusta Xavier, irmã do poeta Faustino de Novais, amigo de Machado. Ela teve um papel fundamental como esposa, amiga, companheira e o ajudaria muito em sua produção literária, especialmente nos momentos de crise (epilepsia), pois também era letrada. Com o casamento, ele evoluiu: além de continuar a escrever poemas, publicou romances e contos de inspiração romântica. E a estabilidade financeira veio com a nomeação na Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. 


Fora a epilepsia, Machado não tinha problemas mais sérios de saúde... 

Considerando a época em que a expectativa de vida girava em torno dos 30 anos e era comum morrer por causa da tuberculose, pode-se concluir que Machado tinha boa saúde. Mas, abalado com a morte do amigo e escritor José de Alencar, em 1877, aos 48 anos (justo por tuberculose), e com o considerável aumento do volume de trabalho e de compromissos assumidos, problemas começaram a surgir. Em 1878, além das crises de epilepsia, Machado começou a sofrer de retinite e de afecções intestinais, que acreditava ser uma tísica mesentérica. Ele tentou todos os tratamentos no Rio de Janeiro. Não obteve êxito em nenhum deles. 


Daí a vinda dele para Friburgo?

Ele recebeu orientação médica de passar pelo menos três meses aqui. Conforme atestam críticos e biógrafos, no final de 1878, Machado obteve licença do serviço público e veio para Friburgo, com Carolina. O casal hospedou-se no Hotel Engert, que ficava na atual Avenida Alberto Braune, próximo à Rua Augusto Cardoso, até fins de março de 1879.


Durante esse tempo, além de cuidar da saúde, Machado escreveu, produziu, enfim... O quanto sua estada aqui foi proveitosa? 

Justamente, o que chama a atenção de leitores e estudiosos da obra machadiana é o processo de mudança ocorrido após ele escrever seu último livro da fase romântica, "Iaiá Garcia”, em 1878. Machado apresentou grande inovação em "Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que foi publicado em 1880 na Revista Brasileira e em 1881, em versão definitiva e em livro, logo após sua estada em Friburgo. 


O que você acha que ocorreu com Machado em Friburgo que tenha provocado essa mudança?

Acredito que o retiro da agitação da capital, no refúgio em que a natureza da Serra se constituíra em conjugação com a grave situação de saúde em que estava proporcionou ao escritor um momento para encontrar a si mesmo, refletir e renovar-se, iniciando uma nova e decisiva fase na sua obra, a qual viria a notabilizá-lo como maior autor de nossa literatura e um dos maiores de todos os tempos na literatura universal. Foi aqui que Machado começou a escrever "Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Tanto que o protagonista morre de pneumonia, moléstia que fazia muitos doentes subirem a Serra para tratar-se. 


Você percebe paralelos da história de Brás Cubas com aspectos observados e vividos por Machado em Friburgo? 

Vejo, sim, um paralelo entre o protagonista e Machado. No capítulo VII de Memórias Póstumas, em delírio, Brás Cubas é elevado a uma montanha e de lá tem uma visão privilegiada da vida e do mundo. Ora, é muito provável que o mesmo teria ocorrido com o autor, sendo a respectiva "montanha” uma alusão a Friburgo. Conforme o biógrafo Daniel Piza, "Machado voltou transformado de Nova Friburgo em fins de março de 1879. Estava decidido a tomar outro rumo na ficção”. Assim sendo, tendo começado a escrever "Memórias Póstumas...” aqui, afirmo que o Realismo, no Brasil, inicialmente eclodiu no Rio, entretanto teve a sua gestação em Friburgo.


Então, que rumo Machado deu à sua carreira quando voltou ao Rio?

Escreveu "Quincas Borba”, a coletânea de contos "Várias Histórias”, participou da fundação e tornou-se o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Anos antes de publicar "Dom Casmurro”, expressou gratidão por Friburgo. Em carta a José Veríssimo, datada de dezembro de 1897, diz: "Estimei ler o que me diz dos bons efeitos de Nova Friburgo. A mim este lugar para onde fui cadavérico há uns dezessete anos, e donde saí gordo, ce qu’on appelle gordo, hei de sempre lembrar com saudades”.

 

Ele retornou a Friburgo uma segunda vez. Para quê?

Voltou 26 anos depois, e ficou de janeiro a fins de fevereiro de 1904. Dessa vez, era Carolina quem estava doente. Ela esperava, assim como Machado, recuperar a saúde em Friburgo. Acreditavam ser anemia, mas tudo leva a crer que se tratava de câncer. Novamente hospedado no Hotel Engert, Machado escreveu uma dezena de cartas, a maioria delas, a José Veríssimo, em que destaca a cidade, o clima, as mudanças desde a sua primeira vinda, as missas na matriz, a construção do atual prédio do Colégio Anchieta e o estado de saúde de sua esposa que, segundo ele, fortificava-se. Infelizmente, após publicar o romance "Esaú e Jacó”, já no Rio, Carolina vem a falecer em outubro de 1904, gerando um impacto enorme em Machado, tamanho era o amor e a intensidade da convivência com a esposa. 


Quão importante é essa ligação de Machado com Friburgo?

Da maior importância para a história, memória e vida cultural do município. Cabe ressaltar que a gratidão de Machado a Friburgo não se limitou às cartas. Em 1908, ano de sua morte, em seu último romance, "Memorial de Aires”, Machado homenageia Friburgo através da personagem D. Carmo. São sete citações diretas, nas quais revela ser uma cidade "encantadora” e "deliciosa”. Creio que muita gente desconheça a importância de Friburgo na vida dele e do impacto de sua estada aqui, em sua memorável obra. Por isso, o município deve reavivar sua história e publicamente reconhecer o legado de mestres ilustres que tiveram substancial passagem por nossa cidade. E digo que são plurais e exímios, como o maior autor de nossa literatura, Machado de Assis. 

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