Das fragilidades e lutas

Um artigo da escritora Déborah Simões, graduanda em Letras pela UFF e bolsista de iniciação científica da Faperj
quinta-feira, 28 de julho de 2016
por Déborah Simões
(Foto: Steve Evans/Wikicommons)
(Foto: Steve Evans/Wikicommons)

“Inquirido sobre a sua raça, respondeu:
– A minha raça sou eu, João Passarinheiro.
Convidado a explicar-se, acrescentou:
- Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia”
(Mia Couto)
    
Diferenças são muitas. Cada outro é repleto de particularidades e (des)colorações. Timbres, olhares, vozes, tempos, forças. Toda vida em um estágio de vivências e experimentações. Todo ser humano jogado na mesma louca sociedade. Todo ser homem, todo ser mulher: somos empurrados diariamente a encarar nossas próprias contradições. Somos chamados a nos desconstruir, a sentir com outros olhos, a falar de uma forma que nossa opinião não seja uma imposição do próprio mundo cercado. 

Temos (e ainda bem) uma esperança renovada em cada vida que se manifesta no “ombro a ombro”, nos laços construídos apesar dos temperamentos difíceis. Ser humano exige habilidades que não temos. O “ser humano” muda muito de um peito para outro, de uma fragilidade para outra. Mas alguns vínculos pedem preservação. Preservação sem o encantamento infantil que nos contaram. Preservar o que nos leva à frente como humanidade.

Mia Couto, autor moçambicano, uma vez escreveu que “a pessoa é uma humanidade individual”. Um jeito bem mais belo e simples de enxergar os pés ao lado. No fundo, se somos vidas, corpos que criam e desejam e temem e buscam, por que a infindável divisão em categorias? E por que a imposição de um grupo sobre outros, de uma verdade sobre outras tantas verdades criadas no interior de cada vivência significada? 

Muita gente fala que o hoje é terrível, que antigamente era melhor. Discordemos disso, por favor. Temos mais Ciência, mais produção de conhecimento, mais acesso à cultura. Estamos evoluindo, é verdade. Muito há ainda para se ajustar: é verdade também. Mas não devemos esquecer que a humanidade discute assuntos antes ignorados em nome de uma “beleza aparente”, de laços que não eram reais. Estamos a um passo de desconstruir os cercos que nos foram impostos. E através de todos estes questionamentos, estamos lutando por um filtro capaz de assimilar, da forma menos agressiva e parcial possível, as informações que chegam diariamente. 

Neste contexto de imagens e textões diários, embaralhamos um pouco os próprios passos, porque pensamos ser obrigação escolher um lado, uma causa única, um grito mais acertado, um grupo. É essa a nossa confusão. A confusão pela qual eu passo, pela qual você passa. Nossa modernidade acelerada e tumultuada não respeita o tempo das relações, os tais vínculos que deveriam ser preservados. E uma forma bonita de desacelerar os extremismos é acolher nossas crianças de uma forma mais sincera e simples. Precisamos amar e educar a infância de cada um com menos regras sem sentido, com menos competição e exibicionismo. Destas tentativas, penso eu, sairiam os vínculos mais bonitos, tanto internos quanto externos. 

Mulheres. Homens. Estamos tentando. Estamos sim. Presenciamos o desenvolver de pais mais cientes de suas paternidades, o incentivar de laços mais igualitários, o torcer pela carreira do par, o dividir das tarefas e cuidados do lar, o libertar das relações dominadoras. Os homens seguem um processo complexo de desconstrução e construção. Diário e difícil. Porque desfazer supostas raízes e certezas demanda tempo e compreensão. Mulheres também seguem um processo de desconstrução e construção, numa busca de autenticidade dentro de si e de domínio sobre as próprias escolhas. Lutas internas que devem ser respeitadas. E lutadas em conjunto. E questionadas quando agridem o limite do outro ou os próprios limites. Sem uma disputa que desqualifique um lado, ou que o coloque como vilão de uma estrutura criada e assimilada bem antes de qualquer escolha individual. Crescemos cheios de restrições. Somos todos vítimas e agentes de uma mesma loucura. E só agora estamos descobrindo como desfazer estes estereótipos, como modificar as próprias certezas. Há de se ter mais amor e cuidado neste processo. Há de se ter mais consciência das fragilidades e das lutas humanas.

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