A consciência da finitude humana

Entrevista exclusiva com a médica paulistana Ana Claudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos
quarta-feira, 07 de outubro de 2015
por Ana Borges
A consciência da finitude humana
No mês dedicado a homenagear os idosos—cujo dia dedicado a eles foi celebrado há exatamente uma semana, na última quinta-feira, 1º—, a médica paulistana Ana Claudia Quintana Arantes esteve em Nova Friburgo para dar palestra sobre o tema “Educar para cuidar”, baseada na prática de cuidados paliativos, uma disciplina pouco difundida e cercada de preconceitos no Brasil.

O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade estão torcendo para que sua morte chegue mais rápido"
Formada pela USP com residência em geriatria e gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP, Ana Claudia é pós-graduada em psicologia—com especialização em cuidados paliativos, pelo Instituto Pallium e Universidade de Oxford. Entre outras publicações, é coautora do livro Cuidado paliativo (Cremesp 2008), e Manual de cuidados paliativos (2009 e 2012), e sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar.

No Hospital Albert Einstein, foi responsável pela elaboração e implementação das políticas assistenciais e treinamentos institucionais em terapia da dor. Atualmente dá aulas na The School of Life, coordena o curso avançado de cuidados paliativos e atende em seu consultório particular e na Sociedade Beneficente Alemã, em São Paulo. Nesta entrevista, a especialista revela como lida com pacientes terminais diante da urgência do tempo.

A VOZ DA SERRA – O que são cuidados paliativos?
Ana Claudia – É uma área da assistência à saúde que presta cuidados integrais e multiprofissionais a pessoas com doenças graves e incuráveis que ameaçam a continuidade da vida. Para além da minha especialidade, geriatria e gerontologia, eu também trabalho com pessoas gravemente doentes. Quando me procuram, já esgotaram todas as possibilidades de cura ou controle de suas doenças. Essa é a minha prática de cuidados paliativos.

Como é feita essa assistência?
Ela abrange a proteção ao sofrimento humano em todas as suas dimensões. Isso significa que meu trabalho como médica se concentra em aliviar o sofrimento que a natureza da doença traz à pessoa e à sua família. E isso também significa que essas pessoas podem ter bem pouco tempo de vida.

Como a senhora define “tempo”?
Para entender um pouco mais sobre o tempo, procurei por antigos textos, livros, filosofias, melodias, poesias e tudo o mais que pudesse me dar alguma noção da importância que deveria dar ao meu tempo e ao tempo de quem cuido. Mas quem mais me ensinou a respeito do tempo foi cada um dos pacientes que cuidei e cuido. Vejo muita gente “saudável” reclamar que não tem tempo para nada, mas o que dá para perceber é que as pessoas que dizem que não têm tempo na verdade não se dão conta de que o tempo que temos é mais do que suficiente para conter tudo de importante e de valor.

O que fazer diante da urgência do tempo?
O que as pessoas não sabem fazer é identificar o que e quem merece o tempo delas. A maioria das pessoas desperdiça seu tempo com emoções, atitudes, pessoas e situações que não valem nada do seu tempo. E pensam que para coisas importantes é preciso dedicar a vida inteira e por isso adiam o melhor da vida como ouvir música, ler poesia, fazer arte, amar, ficar em silêncio, brincar...

Temos uma enorme dificuldade em administrar nosso tempo. O que fazer para melhorar isso?
É comum adiarmos as coisas para quando tivermos mais tempo. E se chega o tempo de adoecer e morrer percebe-se que não fizemos nada do que importava de verdade. O pouco tempo que o relógio nos aponta pode dar origem a experiências tão ricas e belas que podem se tornar eternas. Basta que os olhos e o coração se abram generosos para a fascinante experiência do encontro. E a experiência que transforma é aquela em que todos os presentes nesse encontro se dão o devido valor, dão o devido valor ao tempo de cada um.

Deve ser angustiante constatar que o tempo acabou...
Nossa cultura é frágil demais em relação à consciência da finitude humana. Falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, quando olha o relógio, repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade estão torcendo para que sua morte chegue mais rápido. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte venha logo. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante. Vida acontece todo dia e poucas vezes as pessoas parecem se dar conta disso.

É importante que seus pacientes saibam que vão morrer? Que sentimentos afloram nesta fase?
Como eu disse, trabalho com pessoas que se sabem finitas. Elas sabem, sim, que têm pouco tempo de vida e consideram isso não como um castigo ou um sofrimento impossível de lidar, como a maioria das pessoas pensa. A sociedade em que vivemos acredita que a verdade pode matar. Mas o que mata mesmo é a solidão de quem sabe em si mesmo sobre a verdade do fim e que não tem mais como viver essa grande e maravilhosa possibilidade de encontros verdadeiros. Quem está morrendo não tem tempo pra desperdiçar com quem não sabe o valor que o tempo tem e eu me dedico muito a respeitar isso. Mas antes de você se assustar com essa realidade, permita-me esclarecer que temos todos nós essa possibilidade de encontro com a morte, mais cedo ou mais tarde. Não deveríamos ter medo da morte e sim da constante ilusão de não viver bem o tempo que se tem. E o encontro com a morte, mesmo que seja somente para uma conversa sobre ela entre amigos queridos, pode nos dar muito tempo de vida. Vida com “V” maiúsculo—cheia de sentido, qualidade, valor, verdade e beleza. Afinal, não deveria ser assim a vida que acreditamos valer a pena ser vivida?

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