A árdua mas gratificante tarefa de trabalhar no Médicos Sem Fronteiras

Uma entrevista com o economista David Campanelle, que foi criado em Nova Friburgo e está na África em missão humanitária
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
por Ana Borges
A árdua mas gratificante tarefa de trabalhar no Médicos Sem Fronteiras

O economista David Campanelle, criado em Nova Friburgo, foi para a África em julho de 2015 para trabalhar na organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). Ele está em Bissau (capital da Guiné-Bissau) exercendo a função de coordenador financeiro, responsável pelo gerenciamento de toda a missão. Mesmo enfrentando inúmeras dificuldades, como a falta de infraestrutura médica e operacional do país, estradas em péssimas condições, falta de equipamentos, materiais e recursos humanos nos hospitais, nenhum destes desafios são suficientes para desanimá-lo. Mas..., “penso ser normal sentir saudade. Todavia, todo dia quando acordo e vejo o trabalho que faço, os resultados que obtemos, a diferença que fazemos na vida da população, eu só consigo pensar na minha próxima missão. E é certo que eu vou continuar trabalhando para MSF. É um trabalho árduo, mas apaixonante”, revelou. Neste entrevista concedida por e-mail, David Campanelle conta como é trabalhar no Médico Sem Fronteiras.

A Voz da Serra - O que o levou a se interessar pelo Médicos Sem Fronteiras?
David Campanelle - Eu sempre me envolvi com as causas sociais, seja via movimentos sociais ou por meio de estudos (minha monografia e dissertação de mestrado tiveram foco na desigualdade social). Somado a isso, eu sei que obtive tudo que tenho porque tive oportunidades que muitas pessoas não têm. Dessa forma, eu quero utilizar meu conhecimento de forma a reduzir essa desigualdade. Embora muitos pensem que desigualdade se combate somente com educação, na verdade, desigualdade é combatida possibilitando o acesso às necessidades básicas e essenciais, como educação, saúde, cultura, lazer, moradia, alimentação, entre outras. E Médicos Sem Fronteiras trabalha para fornecer uma dessas necessidades e, indiretamente, afetamos outras ao realizar trabalhos nas regiões nas quais atuamos.

Desde quando você participa desta organização? Está em Guiné-Bissau há quanto tempo e pretende ficar até quando?
Essa é a minha primeira missão. Eu comecei a trabalhar em julho deste ano, mais precisamente na capital, Bissau, e fico até julho de 2016.

No que consiste a sua função como coordenador financeiro?
Sou responsável pelo gerenciamento financeiro de toda a missão, dando apoio aos projetos que temos, e também responsável por garantir que todo os procedimentos financeiros estão sendo seguidos corretamente na missão. Eu traduzo todas as informações relativas aos recursos para o orçamento. Além disso, eu sou responsável pela tesouraria da missão, com o objetivo de realizarmos nossas operações médicas e logísticas de forma rápida, segura e tranquila. Por fim, eu supervisiono a parte de contabilidade, controle das contas, entre outras funções.

Como é investida a verba repassada para o MSF? Que critérios são usados para direcioná-la?
Em cada país que atuamos, definimos nossos objetivos. Tendo os objetivos, nós buscamos quais recursos humanos - físicos e monetários – são necessários para atingir tais objetivos e, ao mesmo tempo, garantir a segurança dos expatriados e a equipe nacional, e o bom funcionamento de todas as operações. Por exemplo, se há a necessidade de comprarmos equipamentos médicos para o tratamento dos beneficiários, faremos a compra. Ou, se necessário que pacientes sejam transferidos para outra unidade, tratamos de arranjar transporte. Todas as nossas operações são voltadas para atividades médicas e a segurança da nossa equipe. Isso define nossos critérios: estamos aqui para apoiar as atividades médicas, respeitando os princípios da organização MSF, os valores médicos e éticos.

Do seu ponto de vista qual a maior dificuldade de trabalhar num país tão pobre, inserido num continente com tantos problemas políticos?
Há sempre muitas dificuldades, das mais diversas possíveis. O que mais dificulta nossas operações é a falta de fornecimento de energia, que acontece constantemente (trabalhamos com geradores com bastante frequência). Isso prejudica a nossa comunicação (interna e externa), com o centro operacional. Além disso, a falta de infraestrutura médica e operacional do país também dificulta nossas atividades. Estradas em péssimas condições, falta de equipamentos, materiais e recursos humanos nos hospitais também tornam nosso trabalho um desafio maior.

Como são as pessoas? Qual o perfil do povo de Guiné-Bissau?
O povo daqui é extremamente amigável! As pessoas são simpáticas, alegres. O povo guineense é, com certeza, o melhor desse país.

Para desempenhar o seu trabalho você lida diretamente com a população?
Infelizmente minhas tarefas não estão muito relacionadas ao tratamento direto com a população. Todavia, nós visitamos nossas operações com certa frequência para vermos as necessidades, o bom funcionamento das atividades e conhecermos com mais detalhes e precisão o que cada departamento está fazendo. Dessa forma, podemos planejar as atividades futuras e os recursos humanos, físicos e monetários a serem investidos.

Em que área a população é mais carente?
Em termos de saúde, as crianças são as mais carentes. O país enfrenta um alto índice de mortalidade infantil, com graves problemas de malária, entre outras doenças. Além disso, o atendimento médico em casos de acidentes, doenças, problemas de saúde em geral são de difícil tratamento por conta das condições já descritas. Para se ter uma ideia da gravidade, na 44ª semana deste ano (entre 26 de outubro e 1º de novembro) tivemos 1.571 admissões de malária (somente malária) em nosso projeto em Bafatá. Esse número contabiliza apenas crianças. Tivemos, em Bafatá, em menos de três horas, 68 admissões de crianças, e isso porque a quantidade de casos — felizmente — está diminuindo.

Que tipo de problema você tem mais dificuldade para encontrar uma solução?
No meu departamento, eu diria que o problema mais difícil de encontrar uma solução é a falta de comprovantes de compras para garantir a qualidade do trabalho contábil. Essa parte é muito importante para certificar aos nossos doadores que nossos gastos são todos voltados para nossas atividades médicas e para a segurança da nossa equipe. Na missão, como um todo, eu diria que é a instabilidade política que não nos permite expandir nossas atividades, visto que dependemos da autorização do governo para realizarmos nosso trabalho. Fora isso, os problemas já mencionados muitas vezes são de difícil solução.

Que tipo de situação pode levá-lo a ter vontade de desistir? Ou isso nunca acontece?
Da minha parte, eu diria que a palavra "desistir" é um pouco forte. Pessoalmente (e acredito que isso aconteça com quase todos da equipe), quase todas as noites eu penso na minha família, nos meus amigos, na vida que tinha no Brasil e penso sobre a escolha profissional que fiz. Para entender melhor o que isso significa, eu tenho amigos e familiares se casando, tendo bebês, celebrando novos empregos e tudo o mais e eu não posso estar presente. Penso ser normal sentir saudade e me sentir triste por conta disso. Todavia, todo dia quando acordo e vejo o trabalho que faço, os resultados que obtemos, a diferença que fazemos na vida da população, eu só consigo pensar na minha próxima missão. É certo que eu vou continuar trabalhando para MSF. É um trabalho árduo, mas apaixonante.

Em algum momento você pensa "Apesar de tudo, vale a pena"?
Até o momento, eu não me questionei quanto a isso. Eu vejo o trabalho médico realizado aqui e sei que todo o esforço é gratificante. As equipes médica e logística – em especial – fazem um trabalho incrível, trabalhando nas mais adversas condições, em tendas, às vezes sem eletricidade, com calor forte, entre outras coisas. Mas todos nós enfrentamos isso e fazemos o nosso possível (às vezes, até o que considerávamos impossível). Como resultado, essa semana tivemos poucos casos de morte no hospital em que atuamos (embora um aumento de admissões) e temos muitas crianças em Guiné Bissau chamadas Beatriz, Pedro, Luiza, que são os nomes dos nossos médicos. É o reconhecimento por parte da população do nosso trabalho, do nosso carinho, esforço e de toda dedicação que depositamos em nossas atividades. O resultado do trabalho de toda a equipe faz tudo valer a pena.

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