Você já viu um administrador ter sentimentos?

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Tempos atrás atendi uma mulher de experiência como administradora de empresas, que me narrava sua história de sofrimento emocional. Sofrimento emocional envolve um monte de sintomas e queixas, tais como angústia, timidez, tristeza profunda, medo excessivo (fobia), hiperatividade, irritabilidade, melancolia, desânimo forte etc. Em certo momento da consulta comentou: “Você já viu um administrador ter sentimentos?” Ela era boa administradora, e tinha sentimentos.

A sociedade está de cabeça para baixo, ou como dizem os paulistas, de ponta cabeça. Num regime aparentemente democrático, numa cultura capitalista, a desigualdade impera, a corrupção avança, e o que faremos como povo? Semana passada numa cidade do interior de São Paulo, o prefeito teve sérios problemas para fazer uma inauguração de uma obra porque a população, indignada com o aumento abusivo do IPTU, fez uma manifestação poderosa.

Funcionou. Decidiram diminuir em 10% o valor cobrado deste imposto esquisito em função da justa indignação manifestada pelo povo. Você luta na vida, consegue comprar a casa própria com suor, lágrimas, noites mal dormidas, prestações que pesam no orçamento familiar, paga várias taxas para o governo e cartórios, e depois, à cada ano, todos os anos, o resto da vida paga o IPTU. Dá o governo alguma ajuda para a manutenção de sua residência cada ano?

Administrador com sentimentos. Engraçado. O que é normal? Ser racional ou ser emocional? Bom, a pergunta não está bem redigida. Fica melhor perguntar: o que é normal nesta situação, e o que é normal naquela outra situação, ser racional ou ser emocional? A cliente no consultório me disse: “Você já viu um administrador ter sentimentos?” No mundo corporativo geralmente a emoção fica em último lugar. Se ficar. Não é incomum administradores bem sucedidos financeiramente chegarem na terceira idade e fazer comentários do tipo: “Se pudesse voltar ao passado, teria mais misericórdia com funcionários e colegas de trabalho, daria mais tempo para meus filhos etc.”

Vez ou outra chegam mensagens assim pela internet, não é? Textos de executivos aposentados que, finalmente, se tornaram humanos e ao olhar para trás em sua vida admitem que teria sido melhor experimentar sentimentos também no lidar com pessoas. Você já viu um administrador ter sentimentos?

Vivemos num mundo bem doente. É preciso força para não sucumbir diante de mensagens diretas e indiretas que propagam que felicidade depende do que você tem. A obsessão pelo poder e riqueza faz um monte de sofredores, não resolve a angústia existencial, cria desigualdades absurdamente injustas. Semana passada Frei Betto escreveu a matéria “Violência e desigualdade” e comentou: “Na lógica neoliberal, toda pessoa de ‘sucesso na vida’ é resultado de seu próprio esforço.” (O Globo, 8 de fevereiro de 2018).

Quem pensa que sucesso na vida é resultado de seu próprio esforço, diz meia verdade. Sim, esforço é necessário para o sucesso. Que mais? Todas as pessoas têm mesmo oportunidades iguais? Possuem todas o mesmo pique para trabalhar? E quem não possui é preguiçoso? É possível ser esforçado e competente e não conseguir sucesso material? Dentre os que possuem pique para trabalhar, quantos são hipomaníacos?

Todas as pessoas que se tornaram muito ricas, foram honestas obrigatoriamente, isentas de corrupção, não deram propinas, não fraudaram o governo, não lançaram mão de “padrinhos”, cresceram economicamente sem conflitos de interesses com autoridades? Frei Betto, na matéria citada acima, escreveu: “Os lucros das empresas, que representam 6% da renda nacional, cresceram 231% entre 2000 e 2015. A JBS que o diga! E isso graças à generosidade do estado que, via BNDES, canalizou muitos recursos para a iniciativa privada cobrando juros irrisórios. Em outras palavras, o pobre povo brasileiro financiou a multiplicação da fortuna dos ricos.”

A doutora L. M. Vaillant, Ph.D., professora de psiquiatria da Universidade de Harvard, falecida há poucos anos, com quem troquei informações sobre angústia, escreveu em seu livro “Changing Character” (“Mudança de Caráter”): “Saúde mental é você ter os sentimentos sem deixar que eles o tenham.” Você já viu um administrador ter sentimentos? Um estudo da Cornell’s School of Industrial and Labor Relations, Notre Dame e University of Western Ontario, mostrou que pessoas rudes são mais bem sucedidas e ganham 18% a mais.

Pessoas rudes em geral são frias, sem habilidade para lidar com sentimentos e ganham mais dinheiro. Na aposentadoria talvez escreverão mensagens adocicadas de arrependimento por terem sido racionais demais na vida. Tarde demais. Elas ficarão só com o dinheiro delas, porque as relações afetivas não aproveitadas no passado, se perderam. Uma grama de prevenção vale mais do que um quilo de tratamento. Alguns administradores têm sentimentos. Aquela minha cliente tinha.

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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