Se reinventar

domingo, 03 de maio de 2015

Sempre chega a hora de jogar fora o que não serve mais. É preciso limpar o guarda-roupa e tirar dele, além do mofo, o que não se usa mais. Há tantas camisetas nunca usadas ou vestidas apenas uma vez. Pra que acumular tanta poeira? Pra que guardar tantas questões que não se busca mais respostas?

Doar o que já foi bom um dia. Recusar doar aquilo que não serve a você. Pois, se não serve para você, não serve para mais ninguém.

Fazer novas as coisas. Se desfazer daquilo que pesa o dia, o ombro e o peito. Deixar para trás o que já pareceu tesouro e hoje é só pó. Pó que enlameia a alma e cansa o espírito. Esse coração precisa bater. Esse sorriso quer e pode sair. Não dá mais para se cansar e se esgotar com rostos que já não nos visitam mais. Saudade se tem dos que amamos e nos amam. Martírio faz bem aos santos e essa vocação eu não quero ter.

Sou andarilho livre que flutua entre as multidões. Meu armário só pode se preencher das paixões. Todo o resto é engano. Todo engano advém de suposições que não se sustentam. Choro pelo que me traz delícia em viver. Admito me engasgar apenas com a verdade que me engrandece. Eu amo o que amo e não me convencerão do contrário até que o contrário se convença do contrário de si mesmo.

Ronco, canto e verso o que a noite me causou. Sorrio com lágrimas nos olhos pelo que o jantar me deixou. Sou fácil de me contagiar. Sou paz difícil de guerrear. Chego em casa decidido a só guardar o que me traz brilho ao olhar.

Limpo gavetas. Retiro medos. Figurinhas repetidas são para serem trocadas. Roupas novas não usadas são piores do que as velhas. Sem lembranças. E mesmo que seus cheiros sejam agradáveis, não trazem saudade. Desfaço os nós das gravatas. Desconfiguro o tempo. Gavetas cheias de receios são gavetas inteiras de fins.

Do dicionário dos dias, certas palavras hão de se riscar. Esquecer suas pronúncias e em nenhuma frase usar. Algumas canções devem ser excluídas. Abortar as suas melodias para na trilha da vida não tocar.

Deixar de remediar a dor e eliminá-la com despedida eterna de quem já não precisa mais insistir. Teimosia não tem nada a ver com intensidade. Só os intensos são felizes. Apenas os intensos não se esgotam em si.

Posso ficar com os retalhos, mas não aceito os remendos. Olho fixo para o teto, mas evito as paredes. Preciso ver o horizonte, tanto quanto necessito imaginar o céu.

É chegada a hora de mudar o mural de fotos. Retirar quem vivo não me habita mais. Manter quem já não vivo ainda mora em mim. Está cheio de vivos mortos. Esquecer de vez é mantra. É preciso aceitar que certos rostos já não fazem mais sentido — se é que um dia fizeram. Não condeno os enganos. Reconheço-os. Só não posso mais aceitá-los. Fazer novas as coisas. Dispensar aquilo que já não serve mais. Libertar para me libertar. Seguir em frente na estrada desenhada pelas estrelas. Há luz no caminho. Há esperança no ponteiro do relógio que marca agora duas horas para voltar para o mesmo lugar amanhã. Só não sei se eu voltarei. Tenho vontade própria. O ponteiro está em sua prisão. Se o ponteiro pudesse limpar as horas. Se o ponteiro pudesse limpar as gavetas e tirar do armário aquilo que não serve mais. Se o ponteiro soubesse mudar o estúpido mural de fotos... O ponteiro aí talvez não seria relógio.

Há que se desfazer daquilo que não serve mais. Negar a tortura de perpetuar o que já te machucou. Recusar a recusa de tudo que te negou. Se engrandecer sem se envaidecer em atos vãos, mas entender que não se é só mais um na multidão. Se reinventar quantas vezes forem necessárias. Reinventar o mundo se preciso for. Mais do que se adaptar — reinventar a si mesmo e tudo que te faz ser você.

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Wanderson Nogueira

Wanderson Nogueira

Observatório

Jornalista, cronista, comentarista esportivo, já foi vereador e agora é deputado. Ufa! Com um currículo louvável, o vascaíno Wanderson Nogueira atua com garra no time de A VOZ DA SERRA em Observatório, sua coluna diária.

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