Se eu fosse Jezebel, Aquiles e Maria do Carmo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
Foto de capa

Se eu fosse Jezebel, uma sacerdotisa dominadora e porta-voz de Deus, sentaria nesta cadeira e sairia escrevendo uma coluna brilhante. Teria poderes literários ilimitados. Se eu fosse Aquiles teria mãos potentes que dedilhariam divinamente o teclado deste computador e escreveria uma coluna sensacional. Se eu fosse Maria do Carmo seria dona de um pomar fértil, com terra cultivada e retiraria das árvores todas as inspirações possíveis.

Mas sou Tereza.

Cadê a inspiração?

Cadê as ideias?

As palavras fugiram de mim neste instante sem fim e se esconderam pelas minhas brechas. Pelos meus hiatos, nada sensatos. Pelos meus vazios sombrios.

Página em branco. Alva. Sem pingos de café ou ciscos. Pronta para ser escrita. E, cadê? A página está diante de mim e eu, com uma mão no queixo e outra enrolando cachos de cabelo, só constato que nada me vem. Sou um frágil calcanhar de Aquiles.

Alguém me salva. Rubem Braga, o maior cronista brasileiro. Com uma crônica que escreveu em 1934, quando tinha 21 anos apenas, a que denominou “Ao respeitável público”. Ele disse exatamente o que eu digo agora. “Chegou o meu dia. Que bela tarde para não escrever.” E foi tão brilhante, que fez uma crônica a respeito do não saber o que fazer com uma página em branco, com uma coluna vazia e com seus leitores.

Os vazios para o escritor podem ser os melhores e os mais ricos momentos. Do nada. Da ausência de toda a imaginação. Surgem inesperadamente textos completos. Como o que escreveu, num momento de ausência monumental, sobre as vagabundas nuvens do céu de Ipanema. Crônica de mestre. Imaginem só, ele sem saber o que escrever, deitado na rede de sua cobertura, olhou, ao acaso, para o céu.  E escreveu...

Mas não sou Rubem Braga. Sou Tereza. Experimentando este vácuo de tudo. De emoções. De inspirações. Talvez, quem sabe, lá nos cantos do meu inconsciente, esteja eu mesma querendo experimentar o nada. Se Virgínia Wolf estivesse aqui, ao meu lado, não iria fazer pesquisas filosóficas a respeito do assunto, falaria desse momento silenciado que a gente, a gente que se diz escritor, que fica calado, não escuta nada e nada enxerga para pinçar algo do mundo.

Nós, diante deste poço, jogamos o balde e quando o puxamos está como foi. Vamos jogá-lo dia e noite. Noite e dia. Nem sujo da terra do fundo do fosso virá.

Mas, de repente, pode sair, ninguém sabe como, o nosso melhor texto.

Esta é a nossa sorte, o escritor tem coisas com a bruxaria. Ah, os meus bruxos vêm de madrugada, encapuzados e mansos, como vultos oníricos e fantasmagóricos. São noturnos e soturnos. Eles vêm com cestos, cobertos com pano quadriculado, vermelho e branco, que escondem, pelo menos, uma única ideia, mesmo que vaga. Pelo menos uma assim, como uma náufraga, eles me salvam; trazem água para afogado. É bom dormir para deixarmos nossos bruxos se achegarem e passarem as mãos em nossas cabeças e massagearem nossos pés.

Certa vez, decidi cuidar deles quando deixei de ter medo. De quarto escuro, de páginas em branco, de voz forte e cara feia. Os mais narigudos e corcundas, de unhas compridas e curvadas, com berrugas escuras nos queixos são os melhores. Temos que retirar do pior o melhor das coisas. Nossos bruxos e fantasmas podem esconder jeitos simpáticos. Quando se revelam, deixam de nos dominar. De nos controlar com grilhões. 

Então, agora, me percebendo mergulhada no nada, quase sufocada, consegui escrever, num breve instante, uma página e meia. Num desabafo literário. O melhor, fiquei sem a angústia de não saber o que fazer. A calma magicamente me invadiu e até me deu uma certa vontade de rir.

Adorei não ter o que escrever porque descobri que tinha o que dizer. Ah, quando sou nada...

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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