O Passageiro do Trem das Dez

sexta-feira, 26 de agosto de 2016
Foto de capa

Lembranças me guardam, como esta corriqueira. Meu filho chegava em casa à noite, soltando um vozeirão que nos inundava. “Sabe o que aconteceu?”  Sem mesmo esperar que nós lhe perguntássemos “o quê?!”, ele começava a tecer histórias do seu dia. Rapidamente, a sala se enchia de vozes, exclamações, e o resto da noite acabava com o gosto do que nos contava.

Estas lembranças ficaram iluminadas em mim não apenas pelo fato de Beto ter sido meu filho amado, mas porque ele era um narrador por excelência, cativava as pessoas com seus causos banais, fazendo-as considerá-los até como acontecimentos de importância.

Nem todos possuem tal habilidade, alguns conseguem tornar acontecimentos interessantes em relatos enfadonhos. Já outros têm o poder de transformá-los em histórias marcantes.

***

É o narrador, sim, senhor. Era assim que Alice iria responder, caso o Chapeleiro lhe perguntasse quem seria o maior contador de histórias de todos os tempos. E eu ainda me arrisco a dizer que o narrador é uma entidade poderosa, possuidora de capacidades quase sobrenaturais, apenas para nos envolver.

Vamos então supor que o narrador seja o último passageiro a entrar no trem das dez. Lentamente, vai à frente do vagão de passageiros à procura de um acento, aos fundos e acaba escolhendo o lugar ao nosso lado. Depois de colocar a valise de mão no bagageiro e ajeitar-se na cadeira, sem cerimônia, começa a falar a respeito de uma pessoa que tem o segundo dedo do pé maior do que todos. Com voz arranhada e num mesmo tom, vai nos martelando uma história tão desinteressante que nos faz sair daquele lugar no meio do vagão e na janela, para um no final do corredor, onde a trepidação do trem é mais sentida.

Ah, mas esse passageiro pode nos contar o mesmo caso de forma tão sedutora, que nos faça querer ouvi-lo até o final e, inclusive, despertar em nós a vontade de escutar outras histórias e mais outras. E, ainda, nos fazer acabar a viagem levando para casa pensamentos diferentes.

Toda história tem uma estrutura, composta de múltiplos elementos interligados e subsequentes, de modo que as relações de causa e efeito conduzem o desenrolar das cenas; os fatos quando transpassados para o mundo da ficção se transmutam em cenas com riqueza de detalhes; Jorge Amado as descrevia muito bem. Quem conta histórias pode situar o ouvinte com os elementos materiais do ambiente, como cortinas, sapatos e tapetes, com aspectos culturais e geográficos, como a temperatura, hábitos e modos de falar, com elementos psicológicos e filosóficos e assim por diante. Também pode não fazê-lo, se quiser. Porém esses detalhes enriquecem as cenas.

Durante as oficinas literárias que há anos faço, costumo fazer exercícios em que descrevo cenas a partir dos sentidos: olhos que notam as tonalidades das cores, ouvidos que percebem o bater de asas, mãos que sentem as rugas do rosto, língua que degusta o sabor doce, cheiros que nos chegam, trazendo a primavera. Escrever revelando os sentidos tem delicadeza; às vezes os contos eróticos podem ser bons exercícios. Não é à toa que o escritor faz o mesmo que o pianista; treina muitas horas por dia.

Mas esse passageiro falante nos cativa quando é capaz de nos prender a tal ponto nas teias de suas cenas que vai se tornar um amigo, possivelmente inseparável, a ponto de habitar na nossa cabeceira e repousar no travesseiro quando adormecermos, já cansados de escutá-lo. E, durante a noite, ele entrará em nossos sonhos e tocará nossos pensamentos mais íntimos com suas palavras.

Em todo trem das dez haverá um passageiro a procura de um ouvinte. Podem ser parecidos, mas semelhantes jamais, mesmo aqueles criados pelo mesmo autor. Há passageiros que gostam de contar as próprias histórias; há os que falam de outros, alguns até mexeriqueiros. Existem aqueles conversadores que querem ser deuses do Olimpo e sabem de tudo e de todos. E, ainda, os autoritários enredeiros que emitem opiniões e determinam o que os leitores devem pensar.

Posso dizer? Todos merecem a chance de serem escutados.

Falar do narrador é um assunto delicado, a começar que nenhum escritor consegue conduzir bem sua história se não tiver este senhor vestido com elegância e simplicidade, calçando sapatos confortáveis e usando perfumes incomuns.

Agora vou deixar algumas perguntas para vocês fazerem quando o encontrarem.

Ele costuma se sentar ao lado de quem?

Muda de voz a cada viagem?

Será que percebe se está sendo chato ou inconveniente?

E por que o trem das dez?

TAGS:
Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.