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quinta-feira, 28 de julho de 2016
Foto de capa

Tenho alma de pastora e cuido das minhas lembranças como ovelhas. Guardo-as. Até quando voam como borboletas janela afora em dias acalorados. Ao anoitecer, sentam ao meu lado, fazendo contente meu pensamento quando triste. Às vezes, barulhentas como as platinelas dos pandeiros, cantam o passado e não o deixam adormecer em sonhos letárgicos.

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Quando pequena, via a vovó Carmem escrevendo cartas para o tio Afonso, um tio da Bahia que eu pouco conhecia. Ela me dizia que nas cartas contava a vida e as notícias das corriqueiras às mais inusitadas, porém de um modo especial; as cartas não poderiam ter uma letra que eles determinavam, ou seja, deveriam ser escritas sem a letra M, digamos, R ou P.  

Naquela época, década de cinquenta, não havia e-mails; havia caneta tinteiro, mata-borrão e papel de carta. Escrever cartas era um hábito e havia uma expectativa diferente da que se tem hoje quando esperamos uma mensagem na caixa de entrada dos e-mails. Era emocionante abrir o envelope com cuidado para não amassar a carta e observar a letra do remetente, um reconhecimento talvez. Quem não conhecia a letra de quem nos escrevia? A vida, sem computadores e celulares, tinha outras sutilezas, graciosidades e surpresas.

Tão assim que vovó Carmem e tio Afonso se escreviam todos os meses, durante anos. Vovó, num papel de carta, desenhava letras certinhas e tracejadas. Nas maiúsculas, então?, fazia pernas compridas e braços finos. A carta pronta era a obra de arte.

Minha avó era professora de canto e dava aulas o dia inteiro, um aluno atrás do outro, fazia tradução do espanhol, do francês e do inglês para o português e, nos tempos livres, escrevia cartas. E a gente não tinha televisão. Só rádio, que pegava as estações com interferências irritantes que não nos deixavam escutar a novela Jerônimo, o Herói do Sertão. Nem os programas da Rádio Nacional, em que seus alunos de canto se apresentavam.

E a coisa da letra ficou incrustada em mim como mariscos nas pedras do mar. Talvez porque gostasse de vê-la buscando palavras nos dicionários de páginas grandes, rodando os olhos pelo ar em busca de ideias, vasculhando sinônimos nos pingentes do lustre da sala. Talvez porque a amasse demais a ponto de trocar uma brincadeira divertida para ficar ao lado dela, admirando seus cabelos brancos azulados e os brincos extravagantes que lhe tocavam os ombros. Ah, acho que gosto de escrever para reviver estes momentos antigos.

E vovó, nas cartas, fazia Literatura sim!, ora se literatura é a arte de usar as palavras, ela as empregava com maestria, inteligência e criatividade.

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Quando escrevo e fico cansada, as ovelhas me trazem letras para me distrair a atenção. Ah!, como elas sabem que gosto das exóticas, como o X, o Ç e o Z; de sílabas estranhas como a de perspicácia. Mas, agora, que não sei bem por quais caminhos vou prosseguir o texto, a mais sábia das ovelhas me coloca a letra E no colo. Logo a E, a que tem estrada para tudo, é ponte entre o sujeito e o objeto, é aperto de mãos entre homens e o universo. É aceno entre almas. Logo a E, que está no meio de tudo; entre ideias, encontros e relações. É afirmação da presença do amanhã e da sua ausência também. É a constatação da dor e do sorriso da conquista. É a letra da modernidade e tem vanguarda porque é a vogal das interações, representa o elo de ligação e a interseção. É o símbolo de agregação.

O escritor desenha E no papel para revelar quem é; EU SOU está em cada palavra sua, mesmo que se camufle nas entrelinhas. Não somos seres escapados, nem precisamos assinar nossos nomes em cada página do livro para mostrar os prismas da nossa alma, como disse Reiner Maria Rilke. Sabemos que o leitor conhece em poucas linhas seus autores preferidos; o escritor, mais do que outro artista, tem um eu revelado e espontâneo, ainda que inseguro e assustado. Nossas palavras buscam a consistência de ser, até na mais profunda reticência. Por isso temos na letra E um trunfo. Queremos ser perspicazes.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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