Desgrudando cracas de pedra

terça-feira, 25 de outubro de 2016
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Será que vou conseguir escrever esta coluna brincando com palavras, experimentando a descontração?

Conversando com outros escritores sobre o emprego da linguagem no Encontro Entre Escritores, mais uma vez, me deparei com os resquícios do ensino acadêmico; venho de rígidos bancos escolares. Não posso recriminá-los, nem me lamentar por ter feito caligrafia, decorado tabuada e prova de ditado. Pelo contrário. Meus professores me ofereceram base consistente; sei pesquisar, elaborar argumentos e transitar com desenvoltura por vários prismas filosóficos. Sabe, no colégio não gostava lá muito de estudar. Para ser sincera, só fui aluna dedicada depois que meu filho nasceu, quando cursava a Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro. Por quê? Talvez quisesse dar bom exemplo; mãe estudiosa, filho bom aluno. Que sonho bonito de mãe! Eu estudava e Beto brincava de carrinho em pistas íngremes do sofá ao chão ou virava Batman. Isso nunca foi um problema para nós; sabia que era um garoto vivo, de inteligência prática e gostava de Beethoven. Mas com minha filha, Gabi, ah!,  realizei meu sonho encantado porque era caprichosa com os deveres. Na época em que ela era colegial, não havia computador. Eu, mestranda, usava máquina de escrever de teclado e nós duas, muitas vezes, estudávamos juntas. Que delícia era aquele cheiro de borracha de morango!

Comecei a escrever por causa da minha relação com eles e por ter tido uma infância divertida: espaços livres, rios e telhados para subir. Por ter tido avós que me contavam histórias. Quando arrisquei a entrar como escritora no mundo imaginário da infância, a linguagem formal da universidade estava em cada linha dos meus textos. Retirá-la foi como desgrudar cracas de pedra. Usar uma pontuação diferente?!, nem se fala, era o mesmo que escutar cantor desafinado.

Naquele Encontro, a questão não era somente minha, vi em outro escritor a mesma dificuldade. A linguagem é um, digamos, aplicativo que temos para expressar sentimentos, é nosso primeiro recurso para a construção de textos literários, seja em que estilo for. Depois da decisão sobre o que vamos transportar para a folha de papel, lidamos com a linguagem.

Querendo, então, fugir do academicismo, resolvi não pesquisar e deixar soltar as palavras para falar de linguagem. Agora, sinto a linguagem como um vulcão que explode continuamente dentro de mim; sempre contraditória, uma espécie de contrapartida a tudo o que sinto. Não é uma expressão carregada de certezas, mas se parece com a larva efervescente quando sai do vulcão em espasmos, sem sequência e incoerente. A linguagem é emotiva, puro sentir. Depois de explodir espasmada, vem o pensamento, organizando tudo, tentando colocar em linhas retas um amontoado de ideias e imagens, transmutando tudo para palavras.

Este aplicativo, baixamos da experiência diária. Momentânea, para ser mais exata, que acaba sendo censurado, vamos dizer assim, por um outro que nos faz ser civilizados. O superego. Já dizia Freud, no Mal-Estar na Civilização. Será a organização da linguagem uma subestimação? É e não é. E aí está, a meu ver, o valor da arte. Literatura é a arte da palavra, a capacidade de dar forma à explosão rebelde, genuinamente nossa.

Arc. Falei, falei, e o academicismo continua aqui, imperando. Será que vou ter que nascer de novo? Ou será que ainda terei que escrever quilômetros e quilômetros de páginas, para, a cada uma delas, ir desgrudando minhas cracas? Mas se excluí-las por completo das minhas configurações, poderei deixar a loucura me determinar? Que é o outro lado, exatamente o oposto. Um descontrole que é, na verdade, um controle mais imperativo ainda.

Quem sabe assim, sofrendo deste dilema essencial e tentando me liberar das expressões carregadas de certezas, aos poucos, vou conseguindo expor no papel uma expressão mais verdadeira e possivelmente desconhecida para mim. Serei uma Tereza modificada, sem sobrenome, talvez. Uma escritora melhor, mais compreendida pelo leitor. E por mim mesma.

Que sabe, passe a me chamar de Azeret.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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