A magia do envelope lacrado

sábado, 01 de agosto de 2015

O livro “A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, me faz refletir sobre as cartas. Ah, as cartas! Ficaram no tempo passado, cada dia mais distante. Que pena...

Há muitos anos guardo este livro na estante do meu quarto. Além de ser escrito com simplicidade e sensibilidade, penetra com sutileza no mundo interior da Raquel, a protagonista. A história aborda questões relevantes, não somente ao adolescente, mas a todos nós.
Como nos vemos através do outro, a literatura tem meios de oferecer ao leitor essa possibilidade. Quer dizer, quando nos envolvemos com a leitura de um romance, os personagens nos parecem pessoas tão reais quanto nós. Assim é Raquel, uma menina em processo de construção da identidade individual, que guarda em uma bolsa amarela três vontades. Uma delas é escrever. A personagem, então, envia mensagens para si mesma: cartas, telegramas, bilhetes. É nesta ideia que vou dedicar a coluna de hoje. 

Escrevemos mensagens em celulares e computadores dos mais diferentes tipos. É comum uma pessoa perder a conta de quantas enviou numa semana. Mas na época em que o livro foi lançado, em sua 1ª edição, 1976, as cartas não eram enviadas por meios virtuais. Havia carteiros, postos de correios, blocos de papel fino e envelopes. O conteúdo das cartas tinha valor afetivo e particular, quer dizer, não era à toa que alguém escrevia uma carta. Era comum esperá-la chegar. Recebê-la poderia ser inesquecível. Quem a escrevia tinha que saber o que dizer e pensar como dizer; às vezes, era necessário fazer longas descrições ou narrar com minúcias. As palavras tinham que causar risos, choros e sonhos. A ortografia e gramática exigiam cuidados também. As cartas podiam ser cheiradas, abraçadas e guardadas em lugares especiais por anos e anos. Dobradas dentro dos envelopes com os selos dos correios, inclusive.

Hoje se envia uma mensagem com um clique e por qualquer motivo banal. As palavras são abreviadas. Podem até ser substituídas por figuras. Ficam perdidas entre milhares. Mas em 1976 era preciso ter tempo para fazê-las. Era ritual: da escolha do papel ao colocar o selo dos correios.

Quando senti vontade de ser escritora, uma professora de oficina de escrita, a Virgínia, me sugeriu que eu escrevesse uma carta para mim de modo a saber um pouco mais sobre a vontade que tivera, as ideias que passavam pela minha cabeça e assim por diante.
Tive, então, uma experiência fantástica. Nunca pensei que minhas próprias palavras pudessem me fazer tantas revelações. Para criar realmente um clima de conversa entre mim e eu, enviei-as pelos correios. O tempo de envio me deu um afastamento das mesmas. Que me foi mágico. Quando a abri, li em suas linhas e entrelinhas ideias que me passaram imperceptíveis no momento que a fiz.
E o mesmo acontece com Raquel. Suas cartas são reveladoras.

Quando nos permitimos escrever para nós, no sentido de compreender melhor o que sentimos e queremos, as dificuldades que vivemos, como vamos lidar com elas, nossos projetos e sonhos. Somos surpreendidos com aspectos que desconhecemos. Parece que as palavras que colocamos no papel liberam tudo o que guardamos nos pensamentos. Trancados com cadeados. Escondidos. Às vezes, impensados.

E a melhor forma de escrever cartas pelos meios convencionais é usar lápis, borracha, papel e nossas mãos. Com o direito de apagar e reescrever. Quando assim o fazemos, liberamos uma energia especial que vem carregada de ideias e afetos. É diferente de teclar letras. Arranhamos a folha de papel com sentimentos. Esperanças. Projetos.

É uma forma de nos conhecermos melhor. Aliás, estamos em busca deste saber a vida inteira e quanto o fazemos, podemos dar passos com mais firmeza, evitar tropeços, amparar nossas quedas com almofadas.

Na primeira carta que escrevi para mim, eu me disse que tinha vontade de ir mundo afora. De 12 de abril de 2007 até hoje um longo caminho percorri; a carta de poucas páginas me foi a grande aliada. Uma luz guia, talvez.
E os adolescentes precisam conhecer a si próprios. Ninguém melhor do que eles mesmos para fazê-lo. Quem sabe se, através das cartas, venham a descobrir o que está adormecido sobre os ombros.

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