Por onde anda Soninha?

quarta-feira, 04 de outubro de 2017

Por onde anda Soninha?

 

Não, nada sabia a respeito dessa donzela procurada assim de forma tão aflita, em hora tão noturna

Não tem aquele dia de dormir muito, doze, catorze horas seguidas? Pois esse era o dia. Andara dormindo mal ultimamente. Numa noite, criança com dor de barriga; na outra, uma entrevista do ministro do Planejamento, concedida à Rede Planeta, deixando claro que as novelas continuarão em cores, mas a vida do povo seguirá em preto e branco, mais para preto, aliás. Na véspera mesmo perdera o sono completamente: jantara fora e não conseguira digerir a conta. Enfim, essas coisas que fazem o pesadelo de um homem de bem, que ama os filhos, mesmo nas dores de barriga, tenta acreditar no futuro da pátria e vai a um restaurante de vez em quando, ou, como diziam os antigos, “de longe em longe”.
Mas chegara, enfim, hora da desforra. Ia dormir como um gato vadio, como uma pedra soterrada, como um morto - vadio e soterrado pelas cobertas. Nem tomou banho, que a água, mesmo quente, podia espantar o sono. Sono que ele embalara o dia inteiro, como mãe que embala o frágil bebê recém-nascido. Nem poderia jurar que tivesse escovado os dentes. Assistira ao noticiário na televisão e tivera a suprema sorte de contar com um pronunciamento oficial, desses que, quando não provocam pesadelos, são tiro e queda para a insônia mais renitente.Sim, ia dormir até o meio-dia, três da tarde, que fosse. Não tinha a mínima intenção de abrir os olhos antes disso. Se eles se abrissem por conta própria, que fossem olhar o mundo sem a sua ajuda.
Foi um pouquinho antes das quatro que ouviu um trimmmmm prolongado feito apito de trem. Estou sonhando, ou melhor, pesadelando, pensou ainda dormindo. Como o barulho insistisse, fez um sinal com o indicador, dizendo que não estava. Mentalmente, informou que tinha viajado. Mas a fera teimava em zumbir, sem que aparecesse alguém que desse um tiro ou ao menos um pontapé naquele bicho estridente. Afinal pulou da cama, já se perguntando quem teria nascido ou morrido, que são as duas razões pelas quais as pessoas nervosas nos telefonam de madrugada, como se nos fosse possível fazer alguma coisa nessas situações literalmente extremas.
Do outro lado foram logo perguntando quem estava falando. Ele, que não estava propriamente falando, e sim bocejando, resmungou o próprio nome, mas com tanto sono que a resposta saiu meio sem convicção... Se ele conhecia Soninha... Qual delas? O cara do outro lado também não sabia. Mas estava bem acordado e queria saber por onde andava Soninha. OK, ela tinha dito que ia embora, mas ele não contava que fosse tão de repente, sem ao menos deixar um bilhete num guardanapo, ou recado com um dos garçons. Como ela disse que conhecia o senhor, quem sabe o senhor não me informa onde ela está? Tinha que falar com ela urgente, afinal, a situação não podia ficar assim, precisavam conversar, se conhecer melhor, combinar alguma coisa...
Não fazia ideia nenhuma sobre quem era essa Soninha ou para onde ela se escafedera. Era um homem de família, razoavelmente sério. Conhecia umas tantas Sônias e até teria prazer em tratar algumas delas por Soninha ou coisa ainda mais íntima. Mas, na verdade, nenhuma das Sônias que conhecia lhe dava satisfação, fosse sair, fosse ficar...Sônia? Soninha? Só minha? Soneca... Não, nada sabia a respeito dessa donzela procurada assim de forma tão aflita, em hora tão noturna.
O telefone do outro lado ficou momentaneamente sem voz, exalou um muito obrigado exangue e desligou... Voltou para a cama, rolou, tapou, destapou, esticou e encolheu: nada de dormir. Às 7 horas, fazia a derradeira tentativa: com a cabeça enfiada debaixo do travesseiro, contava os últimos carneirinhos do mundo. Às oito, estava diante do espelho fazendo a barba, com frieza e precisão. Por trás dos olhos avermelhados, ia se formando um plano infalível para exterminar todas as Soninhas da face da terra.


Robério Canto é escritor, professor e membro da Academia Friburguense de Letras

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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