Ouvidos e bocas

quarta-feira, 08 de fevereiro de 2017

Ia responder “muito bondosa”, mas, traído pelo subconsciente, suspirou “muito gostosa”

Às vezes a gente se confunde. Sei do caso de uma distinta senhora que, saindo de uma festa, deu o braço ao marido e segredou-lhe no ouvido que tinha achado a festa uma porcaria. E isso com um palavreado que uma senhora distinta nunca deveria usar. O que não seria tão grave se o braço e o ouvido fossem do marido. Mas não eram. Na confusão das despedidas, ela se alinhara com o anfitrião, enquanto que o marido que de fato lhe pertencia tinha ficado um passo atrás, despedindo-se da dona da casa.

É de muito bom senso escolhermos com cuidado os ouvidos em que despejamos nossas palavras, seja para poupá-los de nossas vãs aflições ou passageiras alegrias, seja para nos pouparmos de que eles, pela via da boca a que estão ligados, comecem a espalhar por aí os segredos que lhes confiamos. Dizem que a natureza nos deu dois ouvidos e somente uma boca para ouvirmos muito e falarmos pouco. O grande erro da natureza foi deixar os ouvidos tão perto da boca que a comunicação entre os dois é quase inevitável.

Eis, pois, que os fofoqueiros não têm culpa da vocação que carregam. Fofocam porque esse é o seu destino, sua glória e sua perdição. Outro dia me contaram que uma senhora, tendo descoberto que o marido a havia traído, resolveu confessar o fato à própria mãe. Esta carregava a merecida fama de leva-e-traz, mas, pensou a filha, não há de falar de mim com os vizinhos. O coração dessa santa mulher suportava tudo pelos filhos, menos guardar segredo. De fato, em menos de uma semana a vizinhança toda sabia que o marido infiel tinha não uma, mas várias amantes, o número destas variado de acordo com a última atualização feita pela sogra indignada.

Também acontece de às vezes usarmos a palavra errada. Em boca fechada não entra mosquito, ensina a sabedoria popular. Meu avô, que sempre complementava a sabedoria popular e era defensor da prudência no falar e no agir, emendava: “Nem bala de revólver”. 

É que ele sabia da história de um jardineiro que, dentre as flores que admirava, admirava especialmente a mulher do patrão. Um dia, questionado por este sobre o que achava da patroa, ia responder “muito bondosa”, mas, traído pelo subconsciente, suspirou “muito gostosa”. Pela cara que meu avô fazia, acho até que o jardineiro não estava mentindo. Apesar disso, o marido ciumento não gostou e ameaçou dar um tiro “naquela boca atrevida”. No dia seguinte, contudo, o homem continuava vivo, ainda que desempregado. Mas todos havemos de concordar que, mesmo em tempos de crise, é mais fácil arrumar outro emprego do que outra vida.

Os pais fazem o que podem para que aprendamos a falar com prudência. As professoras fazem o que podem para que aprendamos a falar com correção. Outro dia mesmo uma delas me contou que um menino falou a popular palavra peru para uma coleguinha. Ressalte-se que ele não estava se referindo àquele estranho animal aparentado com o galo. Estava, na alta sabedoria dos seus seis anos, dando uma aula de anatomia. A aula era talvez precoce, mas bem intencionada.

Conforme bem ensina a moderna pedagogia, a professora aproveitou a deixa para aprofundar os conhecimentos da turma e explicou que o nome certo daquilo não era peru, e sim pênis. Mas vocês sabem como as crianças de hoje em dia são desatentas. Tanto que, dois ou três dias depois, outra criança repetiu na sala a designação popular, em detrimento da designação erudita do supracitado objeto. E nem sequer a menininha do parágrafo anterior havia aprendido a lição. Tanto que parece ter confundido a palavra pênis com alguma outra parecida.  É o que se deduz da prontidão com que ela corrigiu o colega:

- A tia já ensinou que o nome disso não é peru. É sapato!

Enfim, não faz diferença. Peru ou pênis, tênis ou sapato, é tudo a mesma coisa. Como dizia Nelson Rodrigues, “todas as palavras são lindas. Nós é que as corrompemos”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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