No fundo do buraco

quarta-feira, 05 de outubro de 2016

Era de meter medo. E medo é pouco para descrever o que sentiram os imprudentes escavadores

Ontem à noite, estava eu com o rádio ligado, mas desligado dele, quando uma voz chamou a minha atenção. Era um pregador no santo direito de anunciar suas convicções religiosas. Sou de opinião de que em tudo na vida, e ainda mais em religião, cada um deve ficar na sua e respeitar todas as outras.

Desde que o mundo é mundo os homens vêm brigando para saber quem melhor conhece Deus e de quem Deus gosta mais. Ainda bem que Deus não se mete nessa história e fica pacientemente esperando para ver quando é que esse pessoal vai se entender.

 No caso da voz radiofônica de ontem, no entanto, acho que houve certo exagero. Conto a história que ouvi e deixo que vocês tirem suas próprias ou impróprias conclusões. Disse o homem, com voz cavernosa, que cientistas americanos e de outras nacionalidades criaram uma broca com a qual começaram a perfurar o chão para ver até onde chegariam. Não consegui entender o que eles queriam, mas, se era só por curiosidade, melhor teriam feito lendo “Viagem ao centro da terra”, deliciosa história de Jules Verne.

Assim, como acontece sempre que lemos bons livros, viveriam uma grande aventura, sem sair do lugar, sem correr riscos, sem gastar dinheiro e, o mais importante de tudo, sem incomodar as minhocas.

Deu-se que, lá pelas tantas, os cientistas ouviram longos e dolorosos gemidos, vindos das entranhas da terra. Espantados, pararam por algum tempo, mas acabaram concluindo que outra coisa que não a voz humana havia produzido aquele som assustador.

E recomeçaram a perfuração, até que os gemidos se multiplicaram, uma verdadeira sinfonia de gritos de dor escapava das profundezas do planeta. Era de meter medo e medo é pouco para descrever o que sentiram os imprudentes escavadores.

Minhas senhoras e meus senhores e, peço-lhes que agora tirem as crianças da sala, porque vou dizer a que conclusão chegaram os cientistas: eles haviam descoberto nada mais, nada menos que o — com licença da má palavra — haviam descoberto... Digamos logo: haviam descoberto o inferno.

Com essa revelação espantosa, o pregador provava que o dito cujo lugar existe e que por lá os sofrimentos são pavorosos. Até aí, nada me surpreendeu muito. O mais incrível é a localização. Meus poucos conhecimentos científicos são suficientes para saber que no centro do nosso planeta faz um calor dos... Não, não usarei mais essa palavra. Digamos apenas que lá é bem quente. Mas que é para lá que vão os pecadores, disso eu nem desconfiava.

Sempre achei que Deus e inferno são ideias que se excluem mutuamente, porque um ser perfeito e amoroso não ia mandar ninguém penar eternamente no fogo. Mas cada um acredita no que quer ou pode, não estou aqui para criticar ninguém. Sartre declarou que o inferno são os outros. Eu, quando muito, acho que os outros às vezes são uns chatos, e creio que o mesmo pensam eles a meu respeito.

Mas não vou além disso. Se depender de meu voto, nenhum ser humano, por pior que seja, vai ser locatário ou vizinho daquele-cujo-nome-não-se-fala.

Não sei se taparam o buraco, a fim de evitar que os moradores lá de baixo tentassem subir e vir complicar as coisas aqui em cima, onde, aliás, elas já andam suficientemente complicadas. A meu ver, o que melhor poderiam ter feito era dobrar os joelhos e implorar misericórdia para todas as criaturas, estejam elas onde estiverem, seja qual for o pecado que tenham cometido.

Na história toda, só uma coisa me consola: não havia cientistas brasileiros metidos nessa experiência. Verdade que não temos muitos cientistas, mas os poucos que temos andam cuidando de coisas mais amenas e, se não fazem grandes descobertas, ao menos não vão cutucar onde não devem, tentando esclarecer coisas que é melhor deixar em segredo, até que Deus mesmo as queira revelar.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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