Não quero parecer o herói do livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”

quarta-feira, 04 de abril de 2018

Outro dia encontrei um conhecido na rua e ele, com justa alegria, veio me dizer que seu primeiro filho havia nascido. Na verdade, nem era tão conhecido, mas, na felicidade em que se encontrava, ele parecia íntimo de Deus e do mundo e estava ansioso para anunciar aos quatro ou cinco cantos da Terra a chegada do primogênito. Conhecem as expressões “tomar bênção a cego”, “dar bom dia a sapo”, “chamar urubu de meu louro” e outras semelhantes? Todas indicam situações de aperto. Mas naquele dia entendi que não apenas as dificuldades levam o ser humano a esses comportamentos tresloucados. Porque, pai de primeira viagem, o rapaz teria comunicado a chegada do herdeiro (das dívidas, creio eu) aos cegos, aos sapos e aos urubus, se urubus, sapos e cegos passassem por ali naquele momento.

O triste foi quando ele me falou o nome que ia dar ao garoto: Van Damme. No meu natural sou bastante discreto e não costumo meter-me na vida alheia. Mas Van Damme? Tenha paciência! Fui obrigado a lhe dizer, da maneira menos vandame possível, que esse nome seria um peso na vida da criança, já que Van Damme, macadame, damevan ou damacame nada significam em Português. Por fim, sugeri-lhe que chamasse o rebento de João Cláudio, que é o mais parecido com o nome do artista a ser homenageado, o rei da pancadaria, Jean Claude Van Damme.

Uns dias depois encontrei o jovem, e ele me disse que tinha discutido o assunto com sua parceira na criação da obra, e que haviam decidido batizar o filhote com o nome de João Cláudio. Assim sendo, creio merecer o seguinte epitáfio, plagiado do apóstolo Paulo: “Combateu o bom combate, conservou a fé e salvou um brasileiro de chamar-se Van Damme”.

Essas coisas me chateiam um pouco. Num país com tantas histórias e culturas variadas, e um idioma redondo e aveludado, que necessidade têm as pessoas de recorrer a línguas estrangeiras para batizar o que quer que seja? Atualmente, vivemos sob a tirania do S antecedido de apóstrofo. O camarada abre uma lojinha para vender aviamentos ou inaugura um hotel cinco estrelas e na hora de escolher o nome do estabelecimento, o mais criativo que consegue ser é tascar-lhe um apóstrofo-S. No esforço meio desesperado para ser diferente, todos acabam iguais. O que há de original em uma barbearia chamar-se Oliveira’s Salão, quando seria mais simpático chamar-se Salão do Oliveira? Será que a Academia da Cachaça teria mais fregueses se em sua fachada estivesse escrito Cachaça’s Bar?

Não quero parecer o herói do livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto. O major Quaresma queria reimplantar o tupi-guarani como idioma nacional. Não chego a tanto. Sei da força do inglês no mundo moderno e sei também que os idiomas se enriquecem na convivência de uns com os outros. Só mesmo as línguas mortas não assimilam contribuições estrangeiras. Mas o massacre a que a cultura brasileira vive submetida é coisa triste de se ver.

Intelectuais listaram as obras mais importantes da nossa literatura, colocando em primeiro lugar “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Machado de Assis foi o único a aparecer com duas obras: “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.  Como não podia deixar de ser, “Grande Sertão — Veredas” mereceu lugar de destaque. O autor, Guimarães Rosa, foi um poderoso recriador da Língua Portuguesa, escritor tão original que, na Alemanha, um admirador gastou nove anos traduzindo um de seus livros. Mas não é necessário ser nenhum Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Euclides da Cunha para achar soluções criativas dentro do nosso próprio idioma.

Abaixo o S com um apóstrofo pendurado nas costas, para podermos dizer, como Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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