Idade, dinheiro, amor

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Se jogar é pecado, não deve ser menos pecado torcer para que alguém ganhe no jogo 

Não sei de onde ela tirou que sou uma pessoa confiável, mas o fato é que desde que nos conhecemos essa senhora me conta sua vida sentimental e financeira. Foi por isso que me atrevi a cumprimentá-la, após tê-la visto com um novo companheiro. Ao contrário do que eu previa, ela não demonstrou muito entusiasmo com a atual situação:

- Mas ele é mais velho do que eu. E pobre, ainda por cima!

Pondero que o primeiro problema não é tão grave, posto que, pelo que pude ver, o dito cavalheiro ainda está bastante inteiro. Acrescento que, além do mais, com os avanços da medicina, o número de anos vividos passou a ser uma coisa relativa. Na maioria dos casos, bengala, pijama e chinelo foram substituídos por uns remedinhos que fazem muito ancião levar a vida como se fosse um garotão na flor da idade.

Para enriquecer peroração já por natureza tão confortadora, conto-lhe o que li outro dia a respeito do Japão. Até recentemente, o governo do país dava a todo cidadão que chegasse aos 100 anos uma taça de prata. A taça era grande o bastante para o velhinho tomar um fogo de saquê com uma só golada. 

Mas o número de centenários tem aumentado tanto que a homenagem continua sendo feita, porém a taça diminuiu consideravelmente de tamanho, agora mais parece um dedal. Ou seja, nem a sólida economia japonesa aguenta premiar a resistência de tanto ancião que sobrevive a si próprio.

Minha amiga admite que de fato o problema não é tanto a diferença de idade entre os dois, o homem já deu sinais de que está em boas condições, inclusive para os embates amorosos. A coisa se complica porque a religião dela proíbe sexo antes do casamento, em vista do que os dois andam meio abrasados, se é que me entendem, não posso ser mais claro do que isso sem perder a elegância. E os dois não se casam justamente por causa do segundo item:

- E pobre, ainda por cima!

E me explica que ambos pagam aluguel, quitinetes assim desse tamaninho, não dá para morarem juntos, ainda mais que ela tem uma filha adolescente. O jeito era alugarem um imóvel com pelo menos dois quartos e envelhecerem juntos, ainda que no Brasil o governo não dê taça de prata aos velhinhos, nem grande nem pequena. Muito pelo contrário.

- Minha esperança é que ele acerte na loteria. Eu não jogo, porque minha religião não permite. Por quê? Porque é pecado, quando um ganha, muitos perdem, e isso não é justo aos olhos do Senhor. Mas ele joga toda semana. Tenho fé que qualquer dia vai ganhar um bom dinheiro. Aí compra um apartamento grande e a gente vai para cama, antes que seja tarde demais para ele!

Senti-me tentado a argumentar que havia aí uma contradição, pois se jogar é pecado, não deve ser menos pecado torcer para que alguém ganhe no jogo.  Mas já o poeta Luís de Camões sabia que amor e lógica não costumam andar juntos, e até se perguntou num belo soneto como pode o amor causar “nos corações humanos amizade, se tão contrário a si mesmo é o mesmo amor?”humano 

Então faço votos que sim, que ele fature na loteca e essa seja mais uma história de amor com final feliz. Talvez nem seja pecado ganhar dinheiro no jogo. Lembro, por exemplo, do deputado João Alves de Almeida que, questionado pela imprensa sobre o seu espantoso enriquecimento, alegou ter acertado 13 vezes seguidas na loteria. E como alguns maliciosos continuassem duvidando, só porque ele presidia a comissão que distribuía as verbas do orçamento federal, apresentou um argumento irrefutável para tamanha sorte: “Deus me ajudou na hora de escolher os números. Acertei 13 vezes!”

Ora, se Deus ajudou tanto a esse digno político que ele poderia ter comprado dezenas de mansões, não há de deixar sem amparo um humilde casal que precisa apenas de um apartamento de dois quartos para juntar os trapos e os corpos.

E nessa esperança nos despedimos. Alea jacta est, como diria alguém que soubesse latim!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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