Grandes viagens

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Grandes viagens

O próprio nome do lugar fazia pensar em sumiço, desaparecimento, ida sem volta

Dizem os cientistas que a Terra vai acabar dentro de pouco tempo, talvez não passe de um milhão de anos, isso se antes seus habitantes não a transformarem num vasto deserto ou numa imensa lixeira.  De qualquer forma, não deverei estar aqui para testemunhar o desastre, quando muito estarei lá em cima, observando os acontecimentos.

Fala-se que, quando tivermos que nos mudar,definitivamente e em massa, nosso novo lar será Marte ou algum outro planeta que se digne a nos receber. Uma grande viagem, com certeza, mas a humanidade já tem experiência no assunto, basta você se lembrar da Arca de Noé. Aquilo, sim, é que foi mudança. Imagine a dificuldade para acomodar lá dentro gato e sapato, amebas e elefantes (sim, porque naquela época os elefantes andavam pelas ruas como hoje andam os cachorros sem dono).

Eu mesmo, sem querer me gabar, descendo de uma família de grandes viajantes. Meus avós paternos vieram dos fins dos tempos, ninguém sabe exatamente de onde. O que eu sei é que, quando eu cheguei, a impressão que se tinha era de que a família Canto era tão antiga por aqui quanto a Pedra do Cônego. A comparação não é original, em nossa cidade todo mundo que fala de alguma coisa muito antiga cita a Pedra do Cônego. Pelo visto, esse cônego também é bem antiguinho.

Já meus avós maternos têm origem sabida e comprovada. Vieram sacolejando num navio italiano que, se não era um transatlântico, também não era nenhum navio negreiro. Mas a ideia que faço deles como grandes viajantes nem é por isso, afinal, eu não estava presente, posto que minha mãe nasceu no Brasil muitos anos depois e eu muitos anos depois dela, lógico.

Meu orgulho desses avós globe-trotters deve-se a uma lembrança tão longínqua que não chega a ser bem uma lembrança, é mais como uma dessas fotos muito antigas, que ficam anos e anos esquecidas numa gaveta e, quando olhadas, mal revelam se o que está gravado ali, atrás das figuras apagadas, é uma árvore, um poste ou um burro pastando.

E já que vocês vieram lendo até aqui, conto o resto da história. Uma de minhas tias morava em Sumidouro. Quando eu ouvia dizer que alguém da família ia visitá-la, ficava até meio assustado, o próprio nome do lugar fazia pensar em sumiço, desaparecimento, ida sem volta. O que aos poucos ia me tranquilizando era que todo mundo parecia tranquilo e até satisfeito. A distância entre Nova Friburgo e Sumidouro é de 30 quilômetros, mas, sendo a estrada a maravilha que é, não se chega lá sem ter percorrido 44.

Mais tarde, depois de ter lido o Guarani, fiquei sabendo do desaparecimento de Ceci e Peri nas águas do Paquequer, rio que atravessa aquele município. Se soubesse disso quando criança, aí mesmo é que julgaria meus avós destemidos aventureiros. Vocês também leram o romance de José de Alencar e sabem do que estou falando: o rio transborda e vai engolindo tudo que encontra pela frente. O bom selvagem, com a força que lhe dava a paixão pela moça branca, arranca uma palmeira do solo, e os dois, sobre essa frágil embarcação, desaparecem no horizonte. Alencar não conta o que o casal andou fazendo depois, mas o que se sabe é que naquela região veio a ser muito comum encontrar pessoas que, vistas de um lado, parecem índios e, vistas de outro, europeus.

Para tão longa viagem, seu Teófilo e dona Maria se abasteciam de pão, mortadela, banana e laranja. Para arrematar a refeição, um vidro de Biotônico Fontoura cheio de café com leite. De carro, a viagem hoje leva perto de uma hora. Naquela época, de trem, talvez não ficasse por menos de três ou quatro. Nada disso assustava meus avós, que, mal se acomodavam nos duros bancos de madeira, começavam a consumir o lanche, que na época se chamava merenda, e nem por isso era menos gostoso e saudável.

Grandes viagens!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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