Esperando Jurema

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Eu era um rapazinho que, não sendo nenhum modelo de beleza, talvez não fosse especialmente feio. E trabalhava. Falando francamente, às vezes tenho a impressão de que o Senhor, ao dar a ordem bíblica "Ganharás o pão com o suor do teu rosto", já estava pensando em mim, milênios depois. Pois bastou que eu me atrevesse a ficar em pé sozinho para que me arrumassem uma ocupação. Daí para frente, nunca consegui realizar o grande sonho de minha vida, que era arrumar um desses empregos para os quais a pessoa vai diariamente com dois jornais embaixo do braço. Chegando ao local do trabalho ou, melhor dizendo, do não trabalho, põe o paletó no encosto da cadeira e vai se informar sobre assuntos importantes e inadiáveis: a novela de ontem, o futebol de amanhã, as guerras de sempre.

Portanto, lá estava eu, eram umas dez da noite. Para criar o clima, direi que a lua brilhava, mas talvez até chovesse um pouquinho. Nessa época, os bancos pagavam aos clientes para deixarem o dinheiro depositado e por aí vocês podem ter uma ideia de como as coisas mudaram ultimamente. Hoje em dia, se você passar na agência e der um adeusinho para o gerente, pode ter certeza que o débito correspondente vai aparecer na sua conta. Pois, acredite se quiser, todo fim de mês os bancários faziam uma jornada noturna, a fim de calcular quanto cada cliente tinha a receber de juros. Alguém dirá que a tarefa era pequena, pois o computador rapidamente realizava as operações. Meu amigo, na época não existia nem mesmo a palavra computador, quanto mais o próprio. O que existia eram máquinas calculadoras movidas à energia muscular: digitavam-se os valores, dava-se um puxão na manivela, as engrenagens rangiam lá dentro, subiam umas barrinhas de metal e estas imprimiam no rolo de papel o valor obtido. Era acreditar ou não. Geralmente se acreditava, pois já então as máquinas gozavam de grande prestígio.

Eu tinha cumprido meu horário, saíra para jantar e voltara na hora aprazada, se me permitem usar esse adjetivo. Agora estava ali na calçada, esperando os colegas chegarem. Como se sabe, esperar é o destino daqueles a quem Nelson Rodrigues chamaria de idiotas da pontualidade.

 Foi aí que uma senhora se aproximou de mim, com ares de quem traz uma sacola cheia de mistérios a serem revelados. Despossuído de qualquer maldade, julguei que a veneranda anciã ia me perguntar pela farmácia mais próxima ou, no máximo, tentar me vender um bilhete de loteria. Até me precavi, porque, àquela hora, naquela esquina, evidentemente tratava-se de um bilhete falso. Com dois passinhos leves, a nobre dama ficou rente a mim e sussurrou no meu ouvido:

- É você que está esperando Jurema?

Ora, ora! Eu nunca fui de ficar pelas esquinas da vida esperando Godôs ou Juremas. E olhe que eu nunca tinha ouvido falar na peça de Beckett, na qual dois mendigos gastam os dias depositando suas esperanças na chegada do misterioso Godot, até que este simplesmente manda avisar que não vem. Beckett era um pessimista. Eu era jovem demais para ser pessimista, ou mesmo otimista, mas já sabia que esse negócio de ficar pelas esquinas esperando Godot ou Jurema não dá bom resultado.

Portanto, a resposta deveria ter sido imediata e talvez um tanto indignada: “Eu não, minha senhora! Talvez seja aquele cavalheiro que acaba de entrar no bar ali em frente”. Isso era o que teria feito um rapaz honesto, bancário e trabalhador. Por um momento, no entanto, vacilei: era sensato recusar essa Jurema sem nunca tê-la visto? Um cavalheiro agiria assim? Lembrei-me da história do sujeito que, viajando pelo interior, pediu pousada numa casa de fazenda. O anfitrião o recebeu, mas advertiu:

- A casa tem poucos quartos, o senhor vai ter que dormir com neném.

Quem dorme com criança, amanhece... vocês já sabem. Por isso o viajante preferiu dormir no banco da varanda, onde curtiu vento e frio a noite inteira. Ao acordar, deparou-se com a morena mais linda e sensual que já tinha visto.

  • Quem é você? Pergunta extasiado.
  • Eu sou Neném, e você?
  • Eu sou uma besta!

Mas vacilei somente uns poucos segundos. Essa Jurema, oferecida assim pelas esquinas, não havia de ser grandes coisas. E ainda que fosse, ou pior ainda se fosse, o que ia eu fazer, aprendiz que era das coisas da vida?

De modo que fiz a cara mais séria e honesta que me foi possível e respondi firmemente que não. Não, não era eu o destinatário daquela pergunta.

E foi assim que eu não conheci Jurema, Jurema não me conheceu e nenhum de nós dois perdeu nada com isso. 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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