Debate cultural

terça-feira, 31 de maio de 2016

Depois os pais reclamam que a gente não tira boas notas

— Cara, tô saindo do colégio agorinha, paga uma Coca aí pra mim, que eu ontem botei teu nome no trabalho de geografia e tu nem sabia da pesquisa. Vou te contar, o ensino no Brasil não tem mais jeito. Imagina que eu fiz a pior prova de minha vida. Se tirar zero é porque sou um gênio, modéstia à parte.

— Tava tão difícil assim, companheiro? Eu sei que tu não é de se apertar em prova...

— Disseste mal... Eu não me apertava quando sentava perto da Glorinha, lembra dela? Uma que não foi na tua festa porque tinha que estudar? Onde já se viu, é ou não é? Tua festa foi um acontecimento, Simpatia! Pintou até uísque estrangeiro e a Glorinha não foi porque tinha que estudar! Uma tarada!

— Tô lembrado, ela até usa óculos. O Cacá andou de namoro com ela, mas desistiu quando perguntou a ela o nome do primeiro donatário da Capitania de Pernambuco e ela respondeu na bucha. Foi a maior humilhação. Ele tinha apostado com o professor que nenhum brasileiro vivo se lembrava disso.

— Donatário? Capitania? Pernambuco? Desse palavrório todo só sei o que é Pernambuco, mas sem aprofundar. Eu entendo mesmo é do Maranhão. Namorei uma mina e o pai dela era de lá. O velho me entupia o ouvido falando do Maranhão e eu aguentando firme, de olho na menina. Só mesmo por amor!

— Essa menina que tu namorou não é aquela que na prova de História respondeu que Vasco da Gama era um time paulista de futebol?

— Mulher é a maior ignorância... Todo mundo sabe que o Vasco da Gama é um time carioca!

— Certo! Mas acho que o papo nem era sobre futebol. Parece que esse cara fez não sei o que lá de importante. Se não me engano, foi ele que descobriu que no Brasil tinha índia.

— Não, nada disso! Esse lance aí é com o tal José de Alencar, um que casou com uma índia chamada Iracema.

— Bom, não vou discutir que de geografia tu entende mais do que eu. E a pesquisa de literatura sobre Manuel Bandeira?

— Tragédia pura, companheiro. Acontece que tenho um tio com esse nome. Gente fina, bicheiro e contrabandista. Pois eu nunca tinha ouvido falar em outro, toquei pra turma como é que meu tio tinha vencido na vida. Trabalho datilografado, capa ilustrada com os 25 bichos e a dezena de cada um. Pois tu não acredita: a professora achou que eu tava brincando, perguntou se eu não desconfiava que nem todo Manuel Bandeira era meu tio e que não existe uma só Maria no mundo.

— O triste é que os professores não levam em conta o esforço da gente. Outro dia fiz um trabalho sobre a mulher brasileira, matéria de minha predileção, entende? Levei tudo gravado, na maior tecnologia... Entrevistei minha mãe, minha avó e minha namorada. Todas três garantiram que eu era ótimo nisso, o máximo naquilo. Pensei que estava limpando minha barra, mas a professora falou que não tinha nada a ver. E tome zero!

— É isso aí. E, depois, ninguém leva nada a sério. Foi por isso que entrei bem hoje. Tu acredita que o professor me fez mudar de lugar na horinha da prova?

— Mas isso já é orbitrariedade! E tu não reagiu?

— Acho que a palavra que tu queria falar é hilariedade. E como é que eu ia reagir? O mocorongo entrou na sala cheio de ora pro nobis e disse que ia mandar fotografar as carteiras do colégio e editar uma enciclopédia, que todo conhecimento humano tava copiado em nossas carteiras. Um gozador.

— Pois outro dia um entregou as provas e ficou lendo o jornal. A gente deitou e rolou, depois deu a maior zebra: cada fileira era uma prova diferente, só igual na aparência. Não é uma falta de lealdade? Pois é assim que eles querem dar boa formação moral à juventude.

— Eu também já me dei mal com esse golpe. A gente confia nos mestres, na maior inocência e depois, ó, se ferra. E tu mudou de carteira?

— Pô, tanto mudei que o Carlito, que sentou no meu lugar, tirou 8. Porque, sem querer me gabar, tava tudo ali. Depois os pais reclamam que a gente não tira boas notas. Pois quando a gente se prepara pinta uma dessas, como é que pode?

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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