Cavalheiros de antigamente

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Foi aí que ela me confessou qual era o seu último desejo!

Bem disse Autran Dourado, no romance “Um cavalheiro de antigamente”: “Uma mentira, para se tornar veraz, carece de outras mentiras complementares”. É a mais pura verdade. Depois da primeira, o mendaz precisa de muita criatividade para ir se desembaraçando das patranhas que cria. Foi o que meu amigo Juliano pôde constatar ao ter o privilégio de viajar com Jorjão, um dos mais consagrados mentirosos de que se tem notícia nesta cidade.

Embora sendo modesto motorista de um órgão público, Jorjão assegurava ter recebido atenção especial do governador durante solenidade no palácio, ter sido consultado pelo prefeito para a realização de mais de uma obra, até médicos já haviam pedido sua opinião antes de tomar certas decisões difíceis. Juliano não era de desmerecer ninguém, ainda mais se esse alguém estivesse dirigindo o carro no qual ele viajava como carona. “Carona não opina, concorda e agradece”, era um dos mantras do meu amigo.

Conversa vai, conversa vem... Melhor dizendo, conversa vem, porque da parte de Juliano nada ia, visto que nada era o máximo que ele conseguia dizer, diante das façanhas que seu companheiro de viagem narrava. Com notável modéstia, Jorjão confessou que dificilmente mulher que entrasse em seu carro saía intocada.

Olhando para aquela cara de quem tinha sido atropelado por um caminhão, as mãos calejadas de volante, a barriga um tanto excessiva para seu um metro e 60 centímetros, ficava difícil acreditar. Mas Jorjão mesmo esclareceu, antecipando-se a qualquer pergunta que lhe pudesse ser feita: “Não existe mulher séria, existe mulher mal cantada”.

Sendo também ele um cavalheiro de antigamente, jurava nunca revelar os nomes daquelas que tombavam sob seus encantos. “Nesse particular, não dou um pio, fico mais calado do que passarinho morto”. Em matéria de conquistas, admitia ser um túmulo, mas até os túmulos se abrem de vez em quando, como temos visto em muitos filmes de terror.

- Ainda na semana passada, tive que levar...” Verdade que não disse o nome, mas pela descrição pormenorizada, materializou-se entre os dois viajantes uma senhora a quem chamaremos de Agripina.  Juliano tomou, então, a liberdade de registrar que dona Agripina estava no hospital há quase um mês e, pelo que se dizia, bem doentinha.  Tomado de surpresa, o narrador logo se recompôs: “Pois foi justamente quando levei ela para uns exames em Niterói. Foi aí que ela me confessou qual era o seu último desejo!”

Em defesa do bom nome daquela dama ausente, Juliano (também ele um cavalheiro à moda antiga) ponderou que aquilo não era possível, posto que, segundo o que se sabia na repartição, ela estava obrigada a repouso absoluto, mesmo no hospital só se levantava para ir ao banheiro e, ainda assim, amparada pela enfermeira.

Talvez você desistisse, mas você não é um mentiroso profissional, quando muito é um amador.  Nosso personagem não se intimidou: “E eu não falei que tem médico que me pede opinião? Esse foi um caso. Recomendei uns exames em Niterói. E nem sabia que eu é que ia levar ela, veja só o que são os acasos desta vida!”.

Foi aí que meu amigo se lembrou de que na semana anterior uma viagem de serviço tinha sido suspensa justamente porque o motorista estava de férias.  

- Mas você não estava de férias na semana passada?

- Fui chamado às pressas. Era um caso de caridade, eu não podia recusar. Acabei fazendo duas caridades pra ela. Rá-rá-rá! Mas não fala nada pra ninguém, que eu não quero comprometer o bom nome de uma senhora tão distinta. Além do mais, são capazes de dizer que estou mentindo. E se tem uma coisa que eu odeio nesse mundo é a tal da mentira!    

O pior é que Juliano confidenciou a história para um amigo e, dois ou três dias depois, teve o desprazer de ouvir a mulher do confidente dizendo a uma colega: “Meu marido deu pra me perguntar se eu já viajei alguma vez sozinha com o nosso motorista. Não sei por que ele se preocupa tanto com isso!”                       

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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