200 anos: uma história (inclusive) de escravidão

sábado, 18 de novembro de 2017

Há quem pense que os 200 anos de Friburgo sejam somente festa. Há quem pense que seja apenas memória construída sobre o mito da Suíça brasileira. E há ainda quem ache que não tem a ver com política. 

Do ponto de vista historiográfico, a data de 16 de maio de 1818 é apenas a assinatura de um decreto para imigração de famílias oriundas da Europa (Suíça) para a Fazenda do Morro Queimado.

Já havia gente por aqui (aliás, muita gente: uma multidão de pessoas negras escravizadas, por exemplo, habitava a região). Contar a história a partir exclusivamente dos suíços, além de errado, é negligenciar a memória e as raízes.

No fundo, sejamos sinceros, destacar 1818 é uma opção ideológica. Uma escolha que tem a ver com embranquecer e elitizar a história. Mesmo que os suíços tenham sido muito pobres (e foram mesmo), a imagem que se passa é a da cultura (dita superior) europeia.

Reforçar os suíços e esconder (além da escravidão) outras contribuições (italianos, alemães, libaneses, japoneses etc) é destacar uma imagem - cuidadosamente esculpida nos inícios de século XX (quase um século depois dos fatos) – que tem a ver com a Nova Friburgo que se diferenciaria do restante do Brasil escravocrata e atrasado. Foi mais propaganda do que história.

É claro que toda civilização tem seus mitos de origem e suas estórias e etiologias; mas isso sempre se dá com clara e proposital intencionalidade.

Atrás do mito da Suíça Brasileira esconde-se, sim, a negação da escravidão (severa por aqui) e das alianças política e ideologicamente complicadas (especialmente com italianos e alemães - nas duas grandes guerras).

Celebrar, por aqui, é mais esconder do que revelar.

É claro que se quer festa. E não apenas qualquer festa. Afinal, não são 200 dias. São 200 anos! Mas se deve querer mais que festa. A cidade merece aproveitar toda a beleza desse simbolismo e construir para si mesma um presente que deixe marcas duradouras para o futuro, especialmente no que diz respeito a qualidade de vida e dignidade da população. 

Se é verdade que há, em um dado momento da história, uma conexão com a chegada de algumas famílias provenientes da região que hoje é a Suíça, é também verdadeiro que não se pode ignorar a presença de outros tantos povos por aqui, inclusive a multidão de escravizados. Vamos cultivar nossa história, sim. Mas vamos ser mais abrangentes, sob pena de cairmos na ficção e na injustiça que faz apenas reproduzir desigualdades. E ainda: uma narrativa que inclui os poucos de sempre e exclui os muitos de nunca. 

Por fim, convenhamos. Onde não há política? A vida humana é política o tempo todo. E isso, apesar da desqualificação que a política eleitoral e institucional vem sofrendo, é bom. Afinal, política é meio pelo qual nos organizamos e ocupamos os espaços. É somente com as ferramentas políticas que conseguimos avançar como civilização. 

Negar a política é a forma mais cruel de se fazer política. E para quem quer fazer de uma data simbólica tão importante uma repetição do de sempre, nada melhor que ficar higienizando e cerceando participações. 

E eis, por isso, o grande desafio de quem está à frente dos “200 anos”: conduzir os festejos e iniciativas de modo que consiga congregar as mais diferentes contribuições democraticamente e, mais importante ainda: que inspire a sociedade a participar.

TAGS:

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.