Para ninar o nosso naufrágio

sábado, 25 de abril de 2015

A frase do título não é minha. É o nome de um dos livros de um escritor pernambucano chamado Fabiano Calixto — autor que nunca li, diga-se de passagem, mas com um título desses não tem como não gostar do cara. Não sei do que se trata a história, o título me ganhou por si só. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a cena do Titanic em que os músicos se põem a tocar em meio ao desespero — literalmente ninando o naufrágio. A segunda imagem, um pouco menos óbvia e com ares de autoanálise, foi a de um cronista quando fala do mundo e de si mesmo. O cronista meio que transforma o caos em beleza.

Claro que, a princípio, eu sequer imaginava que pudesse fazer de Kiko — meu diário da quinta série, que tinha nome e sobrenome — uma profissão. Tampouco percebi que Luis Fernando Verissimo, um dos meus autores preferidos, pudesse ganhar muito dinheiro com aqueles livros incríveis que chegavam às minhas mãos. Porque aquilo era amor, desespero, raiva, ironia, ódio, tesão, solidão — menos profissão. Imaginava-o dentista, advogado, professor, que vez por outra pegava na caneta só pra extravasar — como eu, a estudante da quinta série. Quem é o louco que atesta para os devidos fins que a função exercida no mundo é sentir — e mostrar — dor? Só o cronista mesmo.

E é aí que se encontram jornalista e cronista. O jornalista é o cronista que precisou de papel assinado pela junta magisterial pra assinar a carteira de trabalho. Os cronistas são um pouco mais irresponsáveis. Por vezes, até assumem outros afazeres — odontológicos, jurídicos, acadêmicos —, mas por baixo dos jalecos e paletós vestem o uniforme dos escritores: aquelas veias altas e pulsantes, ululando de injustiças. De fato, o jornalista separa o trigo do joio — e publica cada qual de acordo com o gosto de seu público. Há jornais que, torcidos, derramam sangue; eu, não. Eu quero abundar de arco-íris cada final de asfalto.

Por trás de cada frase de cada parágrafo de um jornal existe uma alma aflita procurando o melhor verbo, substantivo ou adjetivo. Só o jornalista aflito percebe diferenças entre ver e olhar, escutar e ouvir, andar e caminhar, to be or not to be. O jornalista entende de licitações milionárias mesmo quando tem que escolher entre almoço ou tênis novo. Ele sai da casa da mãe que perdeu o filho e entra nos salões das prefeituras com o mesmo ar pérfido de quem não espera mais nada da vida. Mas ele sempre espera. E espera também poder mudar as próprias palavras, dar notícias menos sangrentas. Mas, no fim, a humanidade é desumana, já diziam todos os poetas do mundo, no dia seguinte o joio vai continuar destaque nos cafés da manhã das padarias. Ainda gostamos de naufrágios e é preciso alguém para cantá-los.

Entre um e outro, fiquei com a coluna semanal de crônicas. Aqui posso contar histórias. Posso transformar cada momento da minha vida numa cena de filme da televisão. Mas não porque quero ser a única personagem de um conto monocromático, mas sim por saber que há milhares como eu. E que esses milhares se reconhecerão. Conviver com os grandes jornalistas com os quais convivo me fez enxergar além das bordas do meu caderno de pauta dupla. Há um mundo lá fora que precisa ser conhecido: os jornalistas narram, os cronistas ninam e os poetas colorem ou descolorem, tudo de acordo com o público. Eu nino naufrágios, como Calixto.
O sobrenome de Kiko, meu diário, era da Silva. Para que fosse o mais real possível aquele relato das minhas — das nossas — entranhas.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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