Nós, os desdentados

sexta-feira, 09 de outubro de 2015

Abro o facebook pelo celular logo cedo, como todos os dias (ou pelo menos até quando a internet aberta da rua funcionar lá em casa). E entre as frases bonitas das moças bonitas nas academias e as crianças despedaçadas que os desavisados teimam em compartilhar e as rejeições acaloradas ao governo do PT, me deparo com o status de Kayte falando sobre as milhares de pessoas pobres vitimadas pela violência todos os dias no Brasil e que não estampam as capas dos jornais, ao passo que a classe média, quando tem uma vida ceifada pelo crime, vira assunto de programa de televisão.

Minha TV estava ligada, na Ana Maria Braga, mais por costume e falta de TV a cabo do que por identificação ideológica com a programação matutina. Aliás, de manhã, nem gente eu sou. Com ela e Louro José, tomando lauto café da manhã, como diz a Beth do Licínio, o sofrido Francisco Múrmura. A tal classe média a quem Kayte se referia em sua postagem indignada. Francisco acabara de perder a companheira de mais de 50 anos de história numa saraivada de tiros, disparados sem dó por traficantes de uma favela de Niterói. Entre um gole e outro naquele café de figuração, ele descreveu o ocorrido.

A coisa toda parecia cena de filme de Vin Diesel — esse que a internet andou proibindo de ser gente e engordar como todo mundo (tem hora que eu tenho vergonha de vocês, na moral). O Waze indicou uma rota errada para o casal e eles dois, que saíram de casa inocentemente para comer uma pizza, dirigiram direto para a morte da mulher de Francisco, Regina, dentro da favela, numa saraivada de balas. O pobre não pode ir à Zona Sul e o rico também não pode ir à favela.  Ir e vir que se danem.

Egoisticamente, meu primeiro pensamento foi totalmente em relação a mim mesma, os casamentos que não deram certo, os amores que não atam nem desatam ou me detestam, a cada vez mais certa possibilidade de jamais completar bodas de ouro ao lado de alguém. Inclusive não sei se é a minha falta de fé e de paixão avassaladora falando por mim no momento, mas acredito que os casais que aí estão completando bodas de materiais nobres serão cada vez mais raros. Casais que os anos 90 uniram e que o bug do milênio não separou talvez serão a última geração de esperançosos e pacientes que se manterão juntos até que um tiro em Niterói os separe. Caramba, um tiro em Niterói. Nunca uma pizza saiu tão cara na vida de alguém. Meu devaneio (in)sentimental se voltou novamente para o casal. Enquanto é costume nacional os crimes hediondos terminarem em pizza, pela primeira vez vi uma pizza terminar em crime hediondo.

Não concordo com Kayte e ao mesmo tempo concordo em gênero, cisgênero, transgênero, número e grau com ela. Não só no Brasil, a morte de um é uma tragédia, mas de muitos, só conta matemática, número, porcentagem, estatística. Quantos milhões de Aylans e Ghalibs são afogados pela guerra todos os dias? Quantas meninas Madeleines já sumiram? Quantas Daniellas Perez levam tesouradas e facadas e demais feridas de objetos cortantes silenciosamente? Às vezes de maridos, às vezes não. Às vezes do próprio pai. Outras, de desconhecidos. Todos psicopatas como Pádua. Cadê nossos Rubens Paivas, lançados ao mar? Cadê nossos Amarildos?

Aí entra a minha discordância. Não tem a ver com classe média. Não tem a ver só com dinheiro. Tragédias são altamente televisionáveis, é uma merda, explora-se a dor do cidadão, é uma droga, só que é graças a toda essa cobertura midiática que as perguntas começam a ter respostas. Aliás, é graças aos ícones da dor que as pessoas começam a se fazer as perguntas—e dor atinge rico e pobre, branco e preto, feio e bonito. Mas Kayte tem razão: só rico, branco e bonito vai tomar café com Ana Maria Braga. Bocas com dentes são mais bonitas na Globo. As sem-dentes que se entendam no Ratinho.

E o que isso tem a ver com Dia das Crianças? Tudo. Afinal, olha só o mundo que estamos deixando para elas. Nos resta  torcer, enfim, pela justiça divina. Porque a dos homens, realmente, não funciona pra nós, os desdentados. Os Aylans, os Ghalibs. Os Amarildos.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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