Mãenia

sábado, 09 de maio de 2015

Pegar uma caneta, um lápis, um aparelho eletrônico qualquer que seja para escrever sobre o Dia das Mães. Protelei a tarefa a semana inteira: pensei que iria nascer de mim mais um texto triste, a nota melancólica de quem enterrou a mãe com a mesma blusa amarela que havia dado a ela no aniversário. Não há como falar genericamente sobre mães, não dá pra não colocar a própria mãe no meio. Tudo que envolve mãe é saudade, tudo, até quem ainda tem a sua mãezinha já deveria estar sentindo saudades dela. Tudo que envolve mãe é amor, que tanto transborda quanto estia. Quem teve ou tem mãe que não presta sente falta de amor, a vida inteira. Mãe é o primeiro rosto que a gente procura, mesmo quando ele não está lá.

Há quem diga que se dividíssemos nossa vida como Dionísio dividiu a História, em antes e depois de Cristo, nosso “Cristo” seriam os filhos. É. Eu tenho três, sei bem como se dá esse turbilhão. Mas, mais que ter que me redescobrir nos períodos d.G, d.A e d.D, desafio mesmo foi superar a orfandade e começar o ano 1 sem ter com quem se reconhecer. Foi vestir a primeira roupa sem a aprovação dela. Foi finalmente entender que os rituais jamais se repetiriam.

Taí, texto triste, bingo. Me junto ao coro dos descontentes de hoje, filhos sem mães e mães sem filhos, para reclamar um pouco dessas malditas datas comerciais, desses domingos que preferiríamos passar em branco silencioso. 

Esta semana, no ponto de ônibus, uma moça ruiva cheia de sacolas se sentou ao meu lado para esperar o Vargem Grande. Ela estava ao celular: nervosa, com frio, tinha brigado com o patrão e, pelo que me pareceu, ia receber uma visita importante em breve, mas sua casa ainda estava bagunçada por conta de uma reforma recente. Seria só mais uma experiência de ouvir a conversa dos outros nos pontos de ônibus da vida afora, costume feio de cronista, não fosse o final da ligação ter mexido profundamente com a criança de orfanato que habita dentro de mim. Depois de elencar as desventuras daquela quarta-feira cinza, a moça ruiva pergunta: “Então, mãe, o que eu faço agora?”.

Não é assim, digamos, nobre, confessar invejas. Mas, quem nunca sentiu? Não consigo nem me lembrar da última vez que pedi a opinião de minha mãe, que disquei o velho 527-3817. E quando vou receber visita, ou discuto no trabalho, pra quem eu ligo? Que voz vai me acalentar do frio? Porque não me foi dado o privilégio de ter a mãe adicionada no Facebook, mesmo que seja para ela fazer comentários embaraçosos nas minhas fotos?

Mas sou mãe, também. Que mundo estranho: sou eu mesma aquilo que perdi. Fui pra casa naquele dia disposta a não lamuriar. Comprei bala e distribuí às crianças, como mamãe fazia, como fazia vovó. Ressuscitemos rituais. Entendi que eu, a fazedora de perguntas, precisarei ter, em algum momento, as respostas. As crianças pedirão. Pedirão meus netos, meus irmãos e meus sobrinhos. Que Deus ajude a morrer minha mania de falar de mãe como se eu fosse a corda arrebentada de um violão não mais tocado. Que domingos temáticos possam ser menos tristes, mesmo quando começa a musiquinha do Fantástico e a gente se dá conta de que amanhã já é dia de levantar cedo de novo. Que nossas mães sejam, que nós mesmas também sejamos o reflexo de um amor imaculado, aliás, que acrescentem o adjetivo mãe como sinônimo do verbo amor nos dicionários. E que nossos textos e filhos nunca mais sejam tristes.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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