A flor do asfalto

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uma vez mais estou eu aqui, sentada no banco da praça às cinco da tarde. Distraidamente disputando espaço na sombra com meninos do tráfico, velhinhos e prostitutas. Por que toda praça de cidade grande é cinza e cheia de gente cinza, suas vidas cinzas como o chão que pisam? Nem sei de onde tirei a ideia besta de não viver no verde-mato que viu nascer. Eu queria palcos e shows de luzes, cidade grande, estudar poesia, mas ainda na rodoviária urbana pude ver a fumaça industrial gritando que isso aqui não era o meu lugar. Mas eu não podia voltar quando tinha pra onde. E agora que nem tenho pra onde voltar, me sinto cuspida. Órfã, desempregada e cuspida.

Pode parecer uma simples metáfora de “oh, como a garotinha do interior se sente presa na vida urbana“, mas a verdade é que estou aqui fugindo do aluguel. Nada romântico confessar isso, mas só neste mês é a terceira vez que o síndico aparece por lá. Que eu vou dizer? Abrir meu melhor sorriso e pedir que me dê mais uma semana, como fiz nas outras duas vezes? Oferecer uma caipirinha e falar sobre como o tempo está cinza nesse lugar de merda, que meu perfume de flores faz um favor a esta fedentina industrial? É olhar a cara condescendente daquele barbudo e lembrar a do meu pai. “Você ainda vai se ferrar e muito.“ Hello, papai, seu emprego de Nostradamus da vida da Ártemis está garantido, viu? Olha eu aqui, ferrada e mal paga.

Ele poderia ter me chamado de Maria, Juliana, Alice, Samara, Ivete, Bianca ou Carolina, mas me chamou de Ártemis. “A deusa da caça, meu amor.“ Ok, então por que não Diana? Tem noção da chatice que é explicar esse nome pras pessoas?

_ Nome de flor, querida?

_ Não, nome de deusa. Deusa da caça e da vida selvagem. É que meu pai era Nostradamus e previu que eu iria vir morar nessa selvageria de Cidade, e em algum momento ia esperar ônibus justo com a senhora.

Mamãe dizia que se ele tivesse colocado Diana, eu choraria por não ter um nome tão legal como Ártemis. Talvez ela tivesse alguma razão. A verdade é que não suporto a ideia de que carrego pra sempre um carimbo que ele tenha escolhido. Velho escroto. Quando eu era criança, achava o máximo aquele cara. Uma vez minha mãe cortou meu cabelo por causa de piolho e eu entrei numa depressão medonha, não queria nem ir à escola. Ele me mostrou uma foto da princesa Diana e olha que legal: ela tinha os cabelos curtos! E o nome com o mesmo significado que o meu. “Seria uma coincidência, Ártemis? Quer apostar que na próxima semana todas as meninas estarão com os cabelos curtos, para ficarem iguaizinhas a minha princesa Ártemis?“. Velho desgraçado. Elas estavam mesmo, todas com o cabelo curtinho. Todas piolhentas também. E eu achando que tinha lançado moda, mesmo não tendo aqueles lindos olhos da princesa, nem seus cabelos dourados (mas o nariz horroroso era igualzinho).

Preciso voltar para o prédio, comer todo aquele sorvete antes que derreta e chorar até de manhã, pra ver se descubro como pagar a luz e o aluguel do mês, antes que o síndico barbudo volte. A deusa vai caçar o quê, pra alimentar a quem?

Procura-se emprego. Habilidade: desenvolvo qualquer uma. Salário pretendido: dinheiros para comer, vestir e morar.

Sou feia, mas sou uma flor. Furei o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, mas até quando? Vaguear a praça com os velhinhos e prostitutas não é o final feliz que pretendem as princesas.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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