Éramos golpistas – e não sabíamos

sábado, 30 de abril de 2016

O ano era 98, 97 ou 98, não lembro bem. Estávamos na sexta série, aquele período nebuloso entre a despedida das barbies e o primeiro soutien. Eu estudava no Dermeval e tive poucos amigos lá; a Tetê, a Suzana, a Tatiana. O Luis Hernane, que foi o primeiro cara que me fez olhar no espelho e me sentir feia. Tinha o Márcio, o Marloan CDF que era ambidestro, o Eduardo. Eu não convivia muito com eles — só com Tatiana, que é minha amiga até hoje —, tinha uma puta fama de puxa-saco porque eu preferia a sala dos professores e a biblioteca, mas de vez em quando me pego pensando neles. Até nos professores. Será que Xampu ainda coloca alunas asmáticas para apitar jogos de vôlei? E o Olney, temido professor de matemática, será que trocou aquele fusquinha?

Foi no Dermeval que fiquei mocinha e fui salva pela Lady Catherine, professora de inglês, mulher do Jorge, que era professor de ciências. Minhas aulas de ciências eram na quarta-feira. As de português, todos os dias. As de matemática, o pânico: as três primeiras aulas da segunda-feira e o resto dos tempos dividido durante a semana. Pode contar que o índice de criminalidade de Olaria é alto por causa dessas três aulas seguidas de matemática em plena segunda-feira.

Eu morria de medo do Danilo R. porque diziam que ele era feiticeiro e eu tinha pavor dessa parada. Uma vez ele levou um crucifixo preto pra escola e eu quase mijei nas calças. No recreio, ele evocava nomes esquisitos e fazia as meninas gritarem. Eu nunca soube o fim dele. Gosto de imaginar que se casou com alguém muito legal e fez a carteirinha de piscina da SEF. Gosto de pensar que aquele atormentado hoje é uma pessoa feliz.

Mas quem marcou mesmo a minha sexta série foi Angela Irene, de cabelos dourados e riso engraçado. Angela canhota. Angela com quem eu ia vender roupa velha nos bazares só pra ter grana pra comprar Trakinas de chocolate.

Angela era pobre e sofrida como eu, época ruim para crianças com fome de comercial de margarina. Fazíamos rifas fraudulentas na escola, quase sempre vendíamos todos os bilhetes. Desenhávamos figurinhas em folhas de caderno, pintávamos com giz de cera em cima. Quem raspasse o giz de cera e fizesse a sequência de três figuras iguais ganhava um prêmio de 50 centavos. Fazíamos bingo no recreio. Dávamos pequenos golpes ingênuos, mas muito bem arquitetados. Angela foi a primeira pessoa no mundo, depois da minha mãe, a acreditar na minha criatividade. E a me enxergar como alguém que não estava nem aí para nada, mas estava sempre querendo alguma coisa.

O pai de Angela era um camarada pão-duro de marca maior. Não há maneira de falar dela sem lembrar desse pequeno detalhe, da questão que ele fazia das moedinhas, de cada centavo — proporcional à nossa avidez em comprar mais e mais biscoito. Era a nossa droga.

Lembro dos sobrinhos de Angela, de sua irmã, tão mais velha que a gente e super descolada, lembro dos olhos verdes de Ismário. Lembro com carinho dos 10 de janeiros, dia de seu aniversário. Lembro que eu gostava mais do seu segundo nome, Irene, mas é de seu pai pão-duro a minha maior lembrança da sexta série.

Uma vez Angela queria comer carne e planejamos o dia inteiro a melhor maneira de pedir o dinheiro a ele. Porque ganhar dinheiro dele era uma verdadeira arte, bem maior que as rifas, bem maior que os bingos do recreio. Ainda lembro do bolo de notas coloridas que ele tirou do bolso da camisa.

E ele foi contando. Nota graúda por nota graúda. Fazíamos planos. Quanto biscoito com aquele dinheiro, meu Deus. Quantas carnes. Poderíamos parar com as rifas, os bingos, com o nosso pequeno ramo de contravenção. Eu poderia comprar um Neutrox grande e o Luis Hernane nunca mais ia me chamar de Ana Géssica do cabelo duro. Poderíamos comprar vários Trakinas recheados. Poderíamos ser mais felizes se tivéssemos dinheiro. Mas a nota que ele nos deu foi a última. De um real. Um verde morto e gasto, um colorido triste que não saltava aos nossos olhos. Uma nota amassada. Beirando ao mofo, ao ódio, ao ano de 98 que consumia a esperança de muitas casas.

“Tome um real, Angela, compre cinco salsichas no Trigo de Ouro”.

Essa frase matou um pouco da nossa alegria, da nossa gula, do nosso prazer em recheios gordos. Angela não comeu carne, não paramos com nossas rifas, ainda visitávamos todos os bazares com roupas velhas debaixo dos braços. Nossa diversão e vingança contra a humanidade ainda era passar trote para um hotel que nunca descobrimos o nome. Depois ligávamos para a Unilever e conseguíamos muitos quilos de amostra grátis de Omo Progress, que vinha com um copo medidor. Quanta raiva daquelas salsichas, como eu queria comprar um bife pra gente, com muita batata-frita, catchup e coca cola.

Mas nós continuamos no Dermeval, pré-adolescentes nervosas, desbravadoras, com medo do Danilo R. e do bina daquele hotel. Continuei a Ana do cabelo duro, não comprei um Neutrox, continuamos a contar centavos para os Trakinas de chocolate.

Foi com a Angela que eu aprendi a esperar por dias mais felizes. Foi a Angela da sexta série quem primeiro me ensinou o que é amizade. Foi ali que descobri que, algum dia, eu seria alguém importante. Comeria carnes gordas. Essas coisas. Sigo tentando.

 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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