Dia de apanhar

segunda-feira, 04 de abril de 2016
Foto de capa
Jessica de "O Mercador de Veneza", por Samuel Luke Fildes

Nesses dias, nessas segundas-feiras em que chove o dia inteiro eu me sinto especialmente mais pobre e penso que publicar um livro pode me ajudar a melhorar na vida. Daí eu tento guardar causos do cotidiano pra contar. É claro que acontece muita coisa por aí, além dos meus olhos, dos meus muros e da minha vã filosofia, e eu tenho que escrevê-las, porque como diz a Clarice Falcão, quem vai comprar um CD sobre uma pessoa só? Hoje, por exemplo, li num site que meu segundo nome foi inventado por Shakespeare. Jéssica. Eu faria uma crônica, talvez, sobre uma bela garota chamada Jéssica. Mas logo lembro de mamãe, que primeiro quis chamar-me de Maria Rita. E depois de Ana Jéssica e no fim escreveu Géssica, que eu sempre detestei. Pronto: já saí do cotidiano. Já abortei a Jéssica que nunca pôde nascer.

Acordei quatro vezes esta noite sonhando que perdia a hora da escola das crianças e acabei quase perdendo mesmo. Levei-os ensaiando meu melhor olhar de mendicância para Lucia, a diretora, acolher a minha prece. No caminho de volta, um ato qualquer de contrição; aliás, não são as segundas-feiras nem os inícios de mês que me motivam dietas ou promessas de vida melhor: são essas voltas da creche, quando eu chego muito perto de perder a hora. Me prometo dormir mais e melhor e comer menos porcaria: e acordo várias vezes, às vezes até vomitando, corpo nervoso. O corpo, inclusive, grita dentro de mim, embora eu ainda continue dormindo mal e bebendo a Coca-Cola que sei lá quantas vezes prometi largar.

Já no caminho do trabalho, um caso crônico para uma crônica: ouvi os gritos de uma criança, menina, dizendo que o que fez, fez sem querer. A voz paterna, cada vez mais grave, cada vez mais perto, dizia que aquela não era a primeira vez. E pimba na bunda da menina, o barulho fofo era do cinto batendo em carne tenra, eu não precisava nem ver a cena pra reconhecer. Foi sem querer, seu animal. Seja lá o que for, foi sem querer.

Descobri que o crime era o de ter mudado a senha do celular e não lembrar qual era a dita-cuja. Eu ia escrever qualquer coisa entre a penitência e o perdão, afinal, ficar sem celular em tempos de WhatsApp deve ser mesmo de doer. Gostaria de não entrar tanto em acusação do batedor e nem em defesa da apanhadora, mas ouço ainda o barulho do cinto na carne nova.

Aí me diz, como é que eu vou escrever, senão memórias? Enquanto escrevo aqui as arranhaduras se cicatrizam. As minhas, de sempre, não as dela. As dela doerão muito ainda, até que entenda que o ser humano é bicho escroto.

Pode deixar, menininha, quando eu for ao Jô Soares, sei que ele há de me chamar e já tenho até os discursos decorados, uma das histórias será a sua, a sua surra, a sua arranhadura desta segunda-feira em que choveu o dia inteiro. 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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