Esses estagiários...

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Todos sabem que a justiça é recheada de cerimônias e simbolismos, como as posses pomposas e ritualísticas, as intermináveis solenidades de premiações mútuas e as famosas togas, totalmente defasadas e descontextualizadas. Aliás, se roupa paramentada impusesse respeito, os escoteiros dominariam o mundo... Enfim...

É bem verdade que de vez em quando alguma coisa muda e a justiça se moderniza, como, por exemplo... por exemplo... Bem, como dizíamos, a tradição é importante para o Judiciário. E um dos instrumentos desta tradição é o linguajar... Erudito, único, complexo, burocrático e desnecessariamente ininteligível. Pelo menos era assim até o surgimento daquele ser que modificou completamente a história do mundo: o estagiário. 

Há teses por aí que pedem a revisão da história oficial do mundo para que seja examinada a participação dos estagiários em alguns momentos importantes da história. Não chego a tanto. Mas que eles contribuem muito para transformar fatos corriqueiros em momentos ímpares, contribuem... Ô, se contribuem...

Vejam o que houve no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e que deixou um desembargador furioso. Tudo começou quando o Diário Oficial publicou uma decisão de um juiz.

Nos autos do processo, o magistrado havia despachado manualmente, cabendo ao estagiário digitar o texto para publicação. Com extrema boa vontade, podemos levar em conta alguma eventual dificuldade em entender a caligrafia do magistrado (e há muitos magistrados que parecem médicos, tal a desgraça na caligrafia), mas, com certeza, bastaria um mínimo de conhecimento da língua portuguesa pra não escrever o que saiu publicado. Veja você mesmo:

“Vistos etc depreendente que o carne do presente insurgimento esta atrelado a desição do recurso administrativo onde segundo a impretante falta a devida fuldamentação lato senso logico que ai esta o merecimento ao mandamus todavia o titulo de apreciação da liminar tenho que não ha por hora elementos de sustentação para o deferimento evidente que apos o contraditorio podera o contexto adquirir outras luzes com nova e nessesaria analise portanteindefiro a liminar solicitem-se as informações intimem-se.”

Contra essa decisão, o advogado interpôs um recurso, que, ao chegar à Câmara julgadora, enfureceu o desembargador relator. Vejam o seu despacho:

“É de se lamentar a absurda cópia da decisão agravada, para fins de publicação no Diário da Justiça Eletrônico, dando o funcionário mostras ululantes de não ter condições de ocupar o posto, visto não ter conhecimentos mínimos de português, expondo o próprio ilustre magistrado ao ridículo, pois não há ponto, não há vírgula, acentos todos abolidos e letra maiúscula apenas uma da palavra ‘Vistos’. Em suma, o tal internetês, perto, é Machadiano.”

O único problema desta história é que não foi divulgado pelo Tribunal o tal texto original, manuscrito, do juiz, que comprova que os erros são oriundos realmente do estagiário. Assim, ficou no ar meio que uma presunção de inocência do magistrado e uma confissão tácita de culpa do estagiário, que é, na verdade, uma espécie de mordomo dos cartórios: é sempre o culpado, mesmo que prove o contrário. Só por ser estagiário...

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Alzimar Andrade

Alzimar Andrade

Alzimar Andrade é Analista Judiciário do Tribunal de Justiça, Diretor Geral do Sind-Justiça e escreve todas as quintas-feiras sobre tudo aquilo que envolve a justiça e a injustiça, nos tribunais e na vida...

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